terça-feira, 11 de agosto de 2015

A CARTA DO FILHO QUE SE FOI

por Alex Costa - Facebook
coluna: Em cada canto um conto

“Mamãe,
Foi me dado o direito de escrever uma carta – a derradeira – e eu não poderia dedicá-la a outra pessoa se não a que me carregou, ainda na sua quase adolescência, por nove meses, cuidou de mim incansavelmente por vinte e um anos e que agora, decerto, levará a saudade do filho pelos anos que lhe resta. Deus veio me visitar hoje, mãe. Disse que lá de cima assistiu a tudo, tudo que se passou desde que começaram meus conflitos, minhas crises mais terríveis, minhas noites mais mal dormidas e disse ainda que contou também cada lágrima que molhou meu travesseiro.
Chegou pedindo desculpas, mãe, desculpas por tudo o que os homens me fizeram, por todas as vezes que voltei para casa assustado com o fogo do inferno - caso eu não me ‘endireitasse’; desculpa por todos os julgamentos que exerceram sobre mim, por todas as pedras que me lançaram pelas vias que caminhei, por todos os dedos apontados no meio da minha enorme confusão juvenil. Deus não tem preconceito, mãe. O medo, mãe, o medo nunca me fez recuar frente ao pecado, o medo quando se mistura ao desejo carnal parece que cria uma vontade ainda maior pelo ato. O medo que me imputaram nunca me impediu de provar as bebidas que provei, deitar nas camas que deitei, fazer tudo que fiz. Eles nunca entenderam que necessário mesmo é que haja um encontro com o verdadeiro Amor, não um relacionamento construído a partir do medo.
Não é fácil, mãe, não é fácil lutar contra aquilo que está dentro de nós há tanto tempo e nós não compreendemos. Procuramos uma resposta, uma saída, uma válvula de escape – mas não há. O que há, se bem repararmos, é um desentendimento mútuo entre os conselhos que nos dão e a realidade que nos cerca. Deus estava a me observar esse tempo todo, mãe, e também chorou quando eu chorei, chorou quando eu falhei, chorou quando ocupei lugares imundos e deixei tocarem no meu corpo, chorou quando eu disse não a Ele. Deus chora, mãe.
Ele é tão simples, tão manso, nem parece com os homens que tão mal O interpretam. Deitei minha cabeça em Seu colo, senti tudo ao meu redor ganhar vida, senti meu coração bater mais forte e uma vontade imensa de rir, Ele riu comigo. Deus é simpático, mãe. Ele afagou meus cabelos e disse: “filho, onde te dói?”, e eu quis olhar para Ele, meio espantado, pois, sendo Deus, Ele não deveria já saber onde doía? Mas Ele passou a mão sobre o meu peito e eu senti conforto, e Ele pediu: “fala com tua boca, filho, quero mesmo é ouvir tua voz”. Deus é sensível, mãe. Contei para Ele tudo que fiz de errado na vida e, mesmo sabendo de cada detalhe do que eu narrava, ouviu tudo em silêncio. Eu nunca me senti tão íntimo de alguém em toda a minha vida.
Eu nunca entendi porque Deus permite tanta mazela no mundo, mãe, tanta criança faminta, tantas famílias destruídas pelas drogas, tantos crimes terríveis, tanto ódio nos corações dos homens, tanta guerra e pouca paz; mas, será mesmo Deus que permite isso tudo ou o homem violento e sem temor que assim o prefere? A tarde era curta e eu sabia que não havia tempo o suficiente para tantas interrogações. Deus é bom, mãe.
Dizer que era errado apenas, mãe, nunca me convenceu de fato, embora eu sentisse que não queria aquilo fazendo parte de mim. Eu nunca pedi que me aceitassem como era, apenas que tentassem me ouvir, me compreender, nunca consegui. Tratavam o problema como algo muito simples, queriam oferecer-me uma fórmula, uma cura, e diziam: “é fácil, tão somente faz o que estamos dizendo, cara”, eles mesmos sabiam que não era assim.
Quando eu me lembrei de tudo, chorei. Quando me lembrei de todas as vezes em que chutei o pau da barraca e fui ao mundo, novamente ser escravo daquilo que se tornou meu vício e nem sequer me dava mais prazer. Ele enxugou gentilmente minhas lágrimas, também chorava, e apenas disse: “eu estava no controle de tudo, filho”. Deus é mistério também, mãe. Ele ainda afagava meus cabelos, mas levantou-se e repousou minha cabeça no meu travesseiro. Ele foi até a janela e respirou fundo, olhou o horizonte que Ele mesmo criou, meu quarto parecia completamente outro, Deus estava ali. E as pessoas lá fora, será que viam a Deus?
Foi quando Ele se aproximou novamente, sentei-me à beirada da cama e Ele sentou ao meu lado. Pegou em minhas mãos, Seu toque foi tão suave! Deus toca na gente, mãe. “Deus, eu confesso que não suporto mais, o fardo é pesado, as tribulações são muitas e acho que não vou conseguir”, eu disse. “Nenhum fardo que te permito tu não podes suportar, filho. Talvez estejas cansado, compreendo”, Ele respondeu. Deus é compreensível, mãe. “Filho, entretanto, tenho um convite a te fazer hoje”, eu olhei para Ele quase sem ar, mãe, coração em ás de sair pela boca. “Fala, Senhor, estou te ouvindo”.
Ele sorriu, enxugou uns resquícios de lágrimas que ainda estavam em meus olhos e perguntou: “Queres vir comigo ainda hoje para junto de mim? Digo, morar comigo em minha morada?”, foi feito o convite. Pulei de alegria, mãe. Era Deus sorridente me convidando para estar junto a Ele por toda uma eternidade, aceitei sem delongas. Foi então quando Ele disse: “apressa-te, escreve à tua mãe que agora trabalha, mas escreve somente a ela, despede-te”. Enquanto eu escrevia esta carta, Deus apanhou minha bíblia que estava há tempos guardada na gavetinha da cômoda e começou a folheá-la. Deus leu minha bíblia, mãe.  Este é um presente de Deus à senhora, mãe, a possibilidade de uma despedida e um conforto, pois tanto pedi que Ele me concedeu o prazer de morar com Ele no céu, na luz.”

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