segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Licânialeaks

Cambono
Clauder Arcanjo



 
Para Edmílson Caminha
 
Domingo. Licânia amanhecera como amanhecia há anos. Os burros pastando na Praça do Poeta, as lavadeiras desfilando, rumo à Pedra da Luzia, com os seus passos cadenciados e seus sacos de roupa, os comerciantes acordando um pouco mais cedo, a fim de se prepararem para a feira, o sino da Matriz de Sant’Anna a chamar as filhas de Maria para a primeira missa dominical. Sem deixar de citar os bêbados, aos magotes, a correrem os becos e vielas da pequena província com a ressaca da última noite e ainda cantarolando as modinhas do Caneco Amassado, venerando e vetusto prostíbulo daquelas plagas.

De repente, um grito ecoou:
— Extra! Extra! Licânialeaks: com a quebra do sigilo telefônico, bancário e fiscal da banca do jogo do bicho do Raul, foram revelados os desmandos dos novos ricos da cidade. Não deixem de ler na Gazeta. Extra! Extra!

Foi como se uma faca cortasse a boca do dia, mergulhando tudo — gente, bicho e natureza — na fundura de um silêncio de sepulcro. De sepulcro caiado, mas... assim mesmo, de sepulcro.

O prefeito municipal acordou nos braços da sua amante e, mais do que depressa, pulou para fora da cama e pediu, ao seu assessor especial para assuntos extraordinários e ordinários, para adquirir todos os exemplares à venda da Gazeta de Licânia.

— Vá, compre tudo, homem de Deus, mais do que depressa. Estarei no meu gabinete à sua espera. E boca calada, ouviu? Boca calada! — e vestiu-se tão ligeiro, que, comentam, em vez da cueca, saiu portando a calçola da amante.
De colhões apertados, e com a cabeça em redemoinho, o alcaide licaniense convocou uma reunião extraordinária do seu secretariado.

— A maior crise do nosso chão, sem nenhuma sombra de dúvida. Urge adotarmos medidas extremas. Analisarei a possibilidade de declarar estado de calamidade pública — defendeu o prefeito nos microfones da Rádio Paciência do Vale, de olho no caixa dois que conseguiria arrecadar contratando empresas ao largo da lei de licitação pública.

Nas bodegas, todos se entreolhavam, bebericando, com volúpia e desconfiança mútua, a caninha batizada. Na primeira relação, havia muita gente relacionada, e muitos “laranjas podres”, como foram alcunhados os paus-mandados dos peixões.

Na missa das nove, o Padre Araquento orou pela paz e pediu, para todos, a bênção e o perdão dos céus.

No banco mais de trás, ouvia-se, claramente, o cochicho, entre um pai nosso e uma ave-maria, de que o sacristão, também, fora denunciado por aplicar, no jogo do bicho, toda a cifra recolhida nos ofertórios das missas da Matriz.

— De certa forma, nem a Santa escapou deste desplante — arrematou, professoral, o João Américo.

Meio-dia, o cabo Jacinto Gamão foi convocado pelo delegado especial designado para o caso. Este, não sem antes lhe medir de alto a baixo, e de verificar a não presença do seu nome no inquérito em curso, perguntou-lhe, com voz de locutor de cabaré:

— Cabo Jacinto Gamão, você está com equilíbrio mental e corporal para executar todas as ordens de prisão exaradas pela autoridade jurídica?
Cabo Jacinto coçou o cocuruto, assuntou bem os miolos, já um pouco fervidos e mexidos por tanto palavrório novo e difícil, e cuidou de responder:

— Tire por dentro, seu doutor! Se é pra prender, me passe a relação, bem como a ordem que o senhor quer que eu recolha os cabras.

O delegado passou-lhe quase uma resma de papel com os mandados de prisão.
Quando, no topo da lista, o cabo deu pelo nome do Coronel João Batista Ferrado, líder e mandante maior daqueles cafundós, as pernas tremeram, querendo lhe faltar.

Cabo Jacinto fez o nome do pai, beijando, em seguida, a medalha milagrosa. Após sungar as calças, um puro e claro pensamento:
— A lei é para todos. Quem não deve, não teme. Não sou juiz, sou um soldado da lei.

Nisto, a ordem:
— Comece logo. Siga a ordem que o senhor juiz designou. Para dar o exemplo, cabo, recolha, em primeiro lugar, o senhor João Batista Ferrado. Sabe onde o nominado reside? — o delegado dava as instruções e media, com precisão de urologista, cada reação na face do cabo com as suas precisas e fundas intervenções.

— É para vir limpo ou sujo?

— Como limpo ou sujo, cabo? Não estou lhe entendendo!

— É uma linguagem nossa. Limpo, se é para trazer na paz e na maciota. Sujo... Bom, você me entende, né? — e amansou o cacete de juá que portava no cós da velha calça de samango.

— Ao crime, a lei. Use de parcimônia, senhor Jacinto. Ficarei aqui para fichar a chegada de cada um dos relacionados no escândalo Licânialeaks.

Naquele domingo, a cadeia pública municipal acordara quase vazia e dormiria lotada. Melhor, lotadinha da silva. Pimbas-pretas e pimbas-brancas; católicos, protestantes e umbandistas; brancos, pardos e pretos; pobres e ricos; velhos e jovens; cachaceiros e abstêmios; homens e mulheres; letrados e iletrados... Enfim, mais da metade da cidadezinha fora recolhida pelo prestimoso e célere cacete de juá do Cabo Jacinto Gamão.

Quando alguns deles adentravam para o fichamento com o olho roxo ou com as costas pisadas e manchadas de sangue batido, o delegado especial levantava a vista em direção à autoridade constituída para a execução das ordens de prisão; e este, candidamente, lhe respondia:

— Foi necessário o uso da tal da Senhora Parcimônia, senhor delegado!
Quando a grande imprensa chegou, com o seu jogo pirotécnico de microfones e luzes, todos os mandados de prisão, de busca e de apreensão haviam sido executados.

— Senhor delegado, senhor delegado! Ao todo, quantos já foram recolhidos para a prisão? — indagou, banhado de curiosidade, Pompílio Traquino, o decano repórter policial da TV Xereta.

— Nada a declarar. Nada a declarar. Amanhã, o senhor juiz dará uma coletiva à imprensa nos salões do Alcione Clube.

Quando o repórter Pompílio Traquino quis romper o cordão de isolamento, foi saudado, e sumariamente bem recebido, pela mão visível e pesada da Parcimônia do Cabo Jacinto Gamão; deixando-lhe a ver estrelas no chão em frente à cadeia.

— Calma, senhor cabo. Muita calma! — pediu-lhe, não sem antes expressar um riso de aprovação e contentamento, o delegado especial do caso.

— Nunca tive calma com sujeitinho metido a enxerido, senhor delegado! Aqui, na minha humilde casa, nunca abri mão: da ordem, do respeito à decência, à autoridade pública e aos bons costumes.

Onze da noite. O delegado especial resolveu recolher-se. Estava por demais cansado. Acordara bem cedo, para a direta execução e gerenciamento da Operação Licânialeaks.

No entanto, depois de um bom banho, entregou-se ao sono com uma serenidade e uma ternura nunca antes sentidas. Estava com o conforto do dever cumprido, bem como resguardado pela parcimônia. Em paz, velado pela boa fé e pelo bom combate do valoroso homem da lei das ribeiras de Licânia.

— Pode dormir tranquilo, seu delegado. Aqui ninguém mexerá com o senhor, palavra de Jacinto Alvíssaras Carnetto, o Cabo Jacinto Gamão. E todos os presos, com a Parcimônia devida, dormirão com os anjos.

Nisto, os presos responderam-lhe, em uníssono:
— Já estamos dormindo. Ouviu, seu cabo? Outra coisinha mais, aqui ninguém precisa mais de Parcimônia. Boa noite!

E dormiram profundamente, a roncarem alto, noite adentro.

Na segunda-feira, logo cedinho, um exército de homens de preto desfilou — com seus carros pretos, com seus paletós pretos, com seus óculos pretos e suas pastas pretas — pela comarca de Licânia.

Eram os advogados de defesa dos indiciados na Operação Licânialeaks.
Semana que entra — haja parcimônia! —, darei cores finais a tão grande escândalo.

Nenhum comentário: