segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Divagações sobre o autógrafo - Parte II: retorno ao culto e à aura



por PJ Brandão


         Dediquei algumas boas linhas no meu texto do último mês sobre o estado dos quadrinhos como arte pela ótica do teórico Walter Benjamim e seu texto A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Talvez seja interessante dar uma lida no que escrevi para dar continuidade ao papo dessa postagem aqui. Caso já tenha lido ou não ligue para sequências lógicas de texto, vamo que vamo!

Ritual e Quadrinhos
         Benjamim aborda em seu texto que a obra de arte inicialmente foi concebida para ser objeto de culto. Tal momento de culto se dava através de um ritual, uma missa, uma celebração, uma reunião de indivíduos ou mesmo um só que se deslocava a um determinado local com o intuito de beber da aura, da autenticidade daquela obra. Como dito no texto anterior, ainda hoje se realiza isso, com grupos grandes de pessoas indo ao Louvre tirar foto com a Monalisa ou indo a um show de uma banda qualquer. E em relação aos quadrinhos, isso é diferente?
         Bem, eu acredito que não. E eventos como o FIQ 2015 e os demais eventos que acontecem pelo país e pelo mundo relacionados a HQs provam isso. Estamos vivendo em um momento de grande profusão de eventos de quadrinhos, e isso marca o retorno da obra de arte ao seu papel de elemento com valor de culto. Claro, no meio da salada conceitual, artistas e quadrinhos se tornam uma coisa só, mas isso não foge da nossa regra. Afinal, uma obra de arte só se estabelece como tal em um sistema que consiste no trinômio autor-obra-leitor. Fechando o triângulo, tem-se uma obra.
         Depois de uma discussão com a Amanda, minha namorada, sobre rituais e pessoas, percebi que a ótica do indivíduo constituinte daquele aqui e agora (Benjamim fala que esse binômio é a autenticidade da obra de arte) é o que define se aquilo é ritual ou não para ele. Exemplo: pense em um segurança parrudo que curte forró eletrônico, mas está trabalhando na portaria de um show de rock. O show não deixa de ser um ritual para a coletividade, mas para aquele indivíduo, que não está sentindo a catarse do aqui e agora, aquilo não é um ritual. Para os demais que se aglomeraram para “beber da aura” da música, sim.
         Vibrar, pular, coração batendo mais forte, gritar, sorrir, emocionar-se… Tudo isso é resquício de um ritual, seja ele em uma igreja, em uma casa de shows, em um centro de eventos, em um auditório lotado. Os quadrinhos, arte fundada na reprodutibilidade técnica, conquista seu espaço de culto.

Colecionismo e Aura
         Para Benjamim, como dito na primeira parte desse texto, aura “a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja”, é aquela energia que emana da música, da escultura, da paisagem, do quadro, do afresco, daquilo que está ao alcance dos olhos, dos ouvidos, mas que ainda está longe, que acumulou histórias, que se vestiu de importância.
         Nos quadrinhos, essa “coisa distante” muitas vezes é vista através do colecionismo. Isso explica os valores altíssimos de algumas revistas como a Action Comics #1, com a primeira história do Superman (valor: US$ 1.390.000,00¹); a Detective Comics #27, com a primeira história do Batman (valor: US$1.380.000,00¹); ou a Amazing Fantasy #15, com a primeira história do Homem Aranha (valor: US$ 280.000,00¹). Converte esse valor em dólar pro real atualmente e veja o tamanho do estrago.
         Para a maioria de nós, simples mortais, apenas segurar uma dessas revistas icônicas por alguns segundos já é motivo de palpitações. Um dia desses, uma amiga (beijo, Flávia!) me mostrou o primeiro volume de Sakura Card Captors, lançado no Brasil pela JBC, nos anos 90, uma das primeiras histórias em mangá aqui no país. Eu já fiquei meio nervoso por estar segurando em mãos um documento do início do quadrinho japonês em terras brasileiras, imagina uma Action Comics #1! O colecionismo é uma das provas que quadrinho tem aura sim, basta ter um público disposto a cultuar.

Autógrafo e Tudo é Narrativa
         Já falamos anteriormente que um evento de quadrinhos lotado de pessoas com interesse em celebrar a arte é um ritual. E uma fila de autógrafos? No FIQ 2015, Mauricio de Sousa, o criador da Turma da Mônica, ia autografar quadrinhos de 70 pessoas. A sessão de autógrafos estava marcada para as 18h, as senhas para a sessão iam começar a ser entregues às 16h, os portões do evento abriam às 9h da manhã. Tinha gente desde 8h da manhã na fila para pegar esse autógrafo. 8 DA MANHÃ!!!
         Durante o FIQ, me dediquei a pegar autógrafos de outros artistas que eu muito admiro (apesar de uns traços do Mauricio de Sousa em alguma das minhas Graphics MSP ainda ser um sonho que espero realizar). Uns escreviam rápido, outros dedicavam alguns bons minutos em cada desenho, uns eram mais calados, outros papeavam sobre a vida, como no caso do Shiko³, autor da HQ Piteco Ingá.
         Eu e Carlitos² conversávamos animadamente na fila para pegar nossos autógrafos no volume 1 do A Boca Quente, nova HQ do Shiko. O autor paraibano, quando viu a gente papeando, perguntou:

Shiko: – Vocês são amigos?
Carlitos: – Somos sim.
Shiko: – Pois venham cá! Fazer uma coisa que eu nunca fiz.

         O autor paraibano pegou nossos exemplares de A Boca Quente, abriu-os, colocou contracapa com contracapa e desenhou uma belíssima caveira compartilhada entre a minha HQ e a do Carlitos enquanto falava sobre seus anos na Itália junto à esposa que estava fazendo doutorado, sobre sua quase vinda a um Festival Concreto em Fortaleza, sobre a vida e outros assuntos triviais. Cada traço no papel, cada palavra daquele cara que a gente tanto admira, era um segundo a mais de emoção.
         A fila e a sessão de autógrafos: um ritual. O autógrafo: único. Por mais que seja feito rapidamente e sem muito interesse pelo autor, ainda é um momento único, de proximidade. O meu quadrinho e todos os quadrinhos autografados no FIQ 2015, nos SMASH!, na San Diego Comic Con, em qualquer sessão de autógrafos do mundo são oportunidade em que público-autor-obra estavam reunidos no aqui e no agora. É uma pequena história capturada, é uma aura acrescentada àquela obra que vai compor parte da sua estante.
         Em seu livro O Sistema dos Quadrinhos, Thierry Groesteen cita logo nas primeiras páginas as questões levantadas por outro autor, Christian Metz, sobre narrativa cinematográfica. Christian afirma que “em um filme narrativo, tudo se torna narrativa, inclusive o grão da película ou o timbre da voz”. Nos quadrinhos, chego a expandir a questão. Em uma HQ, a cor, a textura e o cheiro do papel são parte da história. A dobra na pontinha de uma página, a mancha de café, a anotação no canto da folha, o pequeno pedaço que a traça comeu… Acrescentaria ainda o autógrafo, aquele momento de culto, de união  entre autor, obra e leitor. O autógrafo e as histórias ao redor dele também se tornam narrativa.

Considerações finais
         Comunicação é um campo fluido, e o que eu falei nesses dois textos podem, inclusive, não fazer mais sentido nenhum segundo a ótica de outros autores. Acredito, no entanto, que as significações propostas possam vir a ser interessantes. É bom saber como as energias fluem nos processos diários, é pra isso que serve a Comunicação, problematizar e procurar entender as dinâmicas entre os seres. Se você chegou até o final desse texto dividido em duas partes, espero, ao menos, que quando você for pegar o autógrafo de algum artista que você muito gosta, sinta a aura que você capturou naquele pedaço de papel.

PS.: Agradeço enormemente à Lu Cafaggi, ao Shiko, à Jen Wang, ao Marcelo D’Salete, ao Luciano Salles, ao Camilo Solano, ao Luís Felipe Garrocho, ao Felipe Damasceno, à Samanta Flôor, ao Ricardo Tokumoto, à Gabi LoveLove6 e aos DIVERSOS outros artistas, muitos deles até então desconhecidos pra mim, que estiveram no FIQ 2015 e que se dispuseram, mesmo que rapidamente, a autografar meus quadrinhos e, por muitas vezes, trocar alguns bons minutos de conversa sobre assuntos quaisquer. Obrigado à comitiva do Ceará, a gente representou bem o Estado e em 2017 vai representar ainda mais! Obrigado também à cidade de Belo Horizonte, quanta gente gentil ajudou a gente nos dias que passamos por lá!

¹ Segundo dados do site Listas10.org.

² Carlitos é um dos meus maiores amigos e um ilustrador sensacional. Para quem quer saber mais sobre o trabalho dele, indico sua página O Carlitos.

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