quinta-feira, 7 de abril de 2016

Há vilões e heróis entre nós V

por CA Ribeiro Neto - Twitter 


Neco trabalhou no roçado sua vida inteira. Não tinha a menor curiosidade de ir à capital, e muito menos de perder sua liberdade de interiorano. O que ele menos gostava era a ruma de regras que tinha lá. Não pode isso, não pode aquilo. Na capital, parecia que tudo só funcionava com as regras humanas. Plantou milho e feijão por 40 anos, até que foi meio que obrigado a se mudar para Fortaleza, para acompanhar o tratamento médico da esposa. O único emprego que conseguiu foi de vigia de mini-shopping. Logo no primeiro dia, uma senhora de idade para num local proibido, desce do carro e grita para ele: "se algum azulzim aparecer, diz que só fui ali assistir a missa". E entra no Shalom. Responder o que? Cada um sabe das regras que deve seguir e quais é indispensável transgredir.

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Pelas ruas do Centro da cidade pode se ver de tudo. Apesar de paradoxo, o inusitado é não encontrar o inesperado. O que esperar de um estabelecimento que mantém uma galinha com mini-chapéu de palha na cabeça, bem na entrada? Um restaurante? Uma casa especialista em canja? Travesseiros a baixo custo, produzidas com plumagem galinácea? No Centro da cidade, o absurdo acontece em razão do óbvio; o surpreendente vira fato simplesmente pela função de existir. Como uma ring girl, a galinha de chapéuzinho meigamente anuncia uma rinha clandestina.

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O mercado de peixes está menos movimentado e Silas parece estar nessa batalha sozinho. As crianças estão fugindo de peixes. Os pais só compram até abril, junho já vem com seus vatapás e farofa de carne do sol. Parece que ninguém mais quer saber de sardinha da Caponga. Chega o dia da reunião dos inquilinos dos boxs, mas não atingem o coro para decidir nada. Silas pega sua caderneta e risca. Tem uma casa para sustentar, tem que pagar o aluguel, a mensalidade da faculdade do filho, tem que pagar os peixes que comprou dos pescadores e tem que pagar os que já serão pescados. Mas Silas recebeu ajuda de onde achava que só vinha despesa. Seu filho, Hugo, estudante de Administração e forrozeiro todo, vê a situação do pai. Numa conversa franca que não acontece a muito tempo, surge o Festival da Sardinha da Caponga.

Um comentário:

Paulo Henrique Passos disse...

Interessante ver a nossa cidade como espaço nas histórias literárias. Andei pensando sobre isso nesses dias.