quinta-feira, 21 de abril de 2016

Terra arrasada

Clauder Arcanjo





Para Zenaide de Almeida Costa

A caverna de Cambono, com mais alguns dias, se viu cercada de uma legião de homens, mulheres e crianças; sem falar nos animais de estimação. Milhares de migrantes de todas as regiões situadas no entorno de Licânia se achegavam. Cada vez que a notícia se espichava de que havia, em pleno sertão nordestino, um homem santo que serenava o sofrimento dos desvalidos e infundia esperança no coração daqueles que ele abençoava, a migração mais se intensificava.

Famílias largavam tudo. Cansados da penúria e da desesperança a que se viam, há tempo submetidos, eles saíam, de mala e cuia, a caminharem no rumo do novo lugar sagrado.

Na capital, a notícia correu com tantas outras. A igreja solicitara a imediata remoção do Padre Araquento, incomodada com a informação de que o pároco pedira bênção ao novo missioneiro. O bispo cuidou de enviar para Licânia um padre ligado à ala ultra tradicionalista. O poder executivo, por sua vez, após uma longa reunião extraordinária no gabinete do senhor governador, resolveu destacar reforço policial para “garantir a manutenção da ordem pública”. Na assembleia legislativa, os deputados se digladiavam em contendas e discursos acalorados, brigas de língua e de verborrágicos argumentos:
— Estamos diante de uma prova clara e cabal da falência da atual política pública de geração de emprego e renda, caríssimos colegas, senhores deputados! — bradava, na tribuna, o líder da oposição.

Para pouco depois, ouvir a réplica do líder da situação:
— Não faça tempestade em copo d’água, meu nobre colega! O nosso estado é laico, e todas as formas de manifestação religiosa devem ser respeitadas.

Enquanto o seu líder discursava, o governador mandou que o secretário de segurança pública interviesse para dispersar os “amotinados”. Havia um claro receio nos coronéis da Zona Norte de que faltasse mão de obra para moverem a engrenagem da indústria da seca; e deixaram claro, ao governador, que urgia uma solução de força para solucionar o caso.

Nesta mesma noite, Maria Abógada sonhou com a Virgem Maria. Em sonho, a Virgem Santa pedia que ela se dirigisse à caverna de Cambono e que, chegando lá, ela lhe enviaria uma nova mensagem.

Maria Abógada acordou bem cedo no dia seguinte e enfiou-se na mata fechada. “Jesus e a Virgem Maria me guiarão, mostrando-me o bom caminho”.

Quando Maria Abógada se aproximou, ela presenciou um encontro de Cambono com a legião de retirantes que acabara de chegar. Cambono levava: na mão direita, o seu cajado; e, na esquerda, a Bíblia. Logo atrás dele, alguns seguidores com sacos de pães. Para cada um dos presentes, Cambono colocava a mão sobre a testa sofrida, soprava-lhe umas poucas palavras de estímulo nos ouvidos, ao tempo em que lhe ofertava um pouco de comida.

— Que a paz do Senhor esteja sempre contigo, filho de Deus!

Meio-dia, quando Cambono se retirou para dentro de sua caverna, Maria Abógada se apresentou:
— Venho da parte da Virgem Maria, senhor Cambono! — anunciou Maria Abógada.
— Eu já te esperava, minha filha. Esta noite, a Virgem, em sonho, me avisou que tu virias.

Antes de continuar, Cambono fechou os olhos e recolheu-se numa espécie de oração.

Maria Abógada surpreendeu-se com o rosto tão manso e plácido daquele homem. De barba grande, de roupas simples e longas, quase surradas, sem falar no cajado nodoso e quase da sua altura, e de uma Bíblia como sua única companheira. Ela correu os olhos no ambiente: uma esteira de palha no canto, uma cruz na parede, uma moringa de água... e nada mais. Um manto de silêncio cobria tudo, coado por uma luz cândida que entrava pela parte da frente e salpicava cacos de cristais no chão e nas paredes, formando uma decoração de brilho e beleza incomuns.

— O que o move, meu senhor? Por que tudo isto, todo este sacrifício? — perguntou-lhe Maria Abógada.
— No início, acredite, muito me perguntava. Hoje, creia-me, resolvi entregar-me. De corpo e de alma, minha irmã! — respondeu-lhe numa voz tão maviosa que Maria Abógada nada mais perguntou.

Cambono dirigiu-se até o cesto dos pães, pegou um pequeno pedaço e ofertou-o à Maria:
— Alimenta-te. Que a paz do Senhor esteja sempre contigo, filha de Deus!

Quando Maria levou o pão à boca, sentiu uma espécie de vertigem. Ao fundo, a imagem da Virgem, em esplendor divino, lhe apareceu. Sobre os pés da Mãe de Jesus, uma mensagem: “Evitem a Terra Arrasada”.

Quando Maria Abógada tornou a si, Cambono estava ao seu lado. Bebeu um pouco de água fresca e contou a ele o que vira, enviado pela Virgem.

— Evitar a Terra Arrasada! E o que farei com este povo de Deus, minha senhora? — indagou Cambono.

Pela primeira vez, Maria percebeu, em seu olhar, um quê de preocupação e dúvida.

— São milhares de desvalidos que apenas querem viver sob o império da esperança e da paz. Crentes em Deus, sonham e esperam a graça da Terra Prometida.

Maria Abógada percebeu que, dentro dos olhos fundos daquele homem simples, havia o mistério dos eleitos. Levantou-se, foi até a boca da caverna e avistou a multidão postada do lado de fora. Sob a copa das oiticicas, no refrigério do vento Aracati, esperavam.

— Acredito na mãe de Deus. Ela apontará um caminho e nos conduzirá. Tenhamos fé — confidenciou-lhe, com a vista perdida no horizonte.

Neste exato momento, ouviu-se uma gritaria de pavor no meio da multidão:
— Olhem para o céu. Lá, no alto, no céu!
— O mundo está escurecendo no meio da tarde.
— É o fim do mundo!
— Valei-nos, Nosso Senhor Jesus Cristo!

Sob a copa das árvores, um grande objeto de luz. Emanando um brilho intenso, enquanto tudo ao redor se cobria de noite.
O que seria aquilo?

Calma, leitor, eu vou explicar. Lembra-se da P.V.A.L.?! Sim, a Porra Voadora nos Ares de Licânia estava de volta.

De dentro dela, desceu, bem no meio da multidão, um senhor de paletó e gravata.

— Glória a tudo que vem do céu. O senhor esteja conosco! — saudou-lhe Cambono.

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