por:
Hermes de Sousa Veras
Cearense em devir-amazônia. Dizem que ficou sombreado na mata e voltou falando sobre profecias de fim de mundo.
Coluna: Etnoliteratura
Ananindeua, 17-08-14
Quem leu Graciliano
Ramos deve saber o quanto o diabo é um ser presente em sua obra e no Nordeste de
cabo a rabo e, por razões migratórias, atingindo o Norte brasileiro. Ora
trazido por nordestinos ‘católicos’, ora levado diretamente pelas mais
diversificadas congregações religiosas que catequizaram, não antes de serem
eles mesmos atingidos, esse país.
Metáfora de grandeza,
exagero, altivez, seriedade, mas também, ruindade, maledicência, malinesa e teimosia...
É comparação pra diabo. O tinhoso surge sempre quando é preciso chamar atenção
do ouvinte ou leitor. É, acima de tudo, uma expressão performática, hipérbole,
definitivamente.
Até
uns punhados de anos atrás ainda era assim nas conversas. Meu pai, sempre
quando me levava para casa da senhora minha mãe, respondia as indagações dela
sobre o meu estado de saúde e se havia me alimentado com um respeitoso “Ele comeu feito um diabo”. A
palavra em questão, de tamanha importância, retumbava em seus lábios, saltando
da boca aceleradamente, tão célere que o “i” e o “a” aglutinavam-se com tanta
intensa promiscuidade que já nem era possível distinguir uma letra da outra.
Dona
senhora minha mãe, além de ser minha progenitora, era recém-evangélica.
Levava-me para o cantinho e reclamava “Onde já se viu, comparar meu filho com o
capeta!”. Surpreso ficava, afinal, o ente era tão presente nas nossas palavras,
um conceito tão útil e pictórico, jamais poderia suspeitá-lo como ofensivo. Mas
mamãe estava em outra lógica, o tal do pentecostalismo, ou neopentecostalismo,
um despotismo desses aí. Nome grandalhão e atrapalhado, chegou pra arruinar
nossa família, separando os parentes em dois: os que creem e os que não creem. Também
roeu com o conceito, a parábola e a metáfora do diabo. O imaginário estava em
frangalhos.
Contei
pra papai. Logo ele pensava duas vezes antes de falar o tal nome. Quando eu
saia correndo feito um cão com couro ardendo, chutando bola, puxando orelha de
moleques ou agredindo as bonecas das minhas primas, aparecia Dona senhora minha mãe, “Esse menino é uma
benção”. E papai pensava “O menino tá com o diabo”, mas não podia falar
e apenas concordava. É, uma benção.
Danado
e danação também não podia mais. Tudo isso por que um ser vivo [diabo]
qualquer, daqueles que possuem esgarçadas capacidades cognitivas de leitura,
resolveu certo dia abrir o dicionário na parte do D e ler o tal do danado. Não
lembro exatamente do que estava naquela página, mas li diversas vezes,
obrigado, claro, por aqueles que mantinham o argumento “É errado chamar alguém
de danado” e não abria mão disso nem com nada [o diabo]. Estava escrito mais ou
menos assim: “Danado, aquele enviado pelo diabo”. Pronto, foi um alvoroço.
Nenhum menino da rua era mais danado. O tinhoso poderia ser o satanás,
excomungado que fosse, mas era um abençoado.
É
incrível a irradiação geográfica dessa proibição. Depois, viajando por esse
Brasil imenso, e agora pentecostal, ouvia as mães
comentando sobre seus filhos mal criados, “É uma benção esse menino!”.
Por
exemplo, conheci um garoto que possuía o transtorno obsessivo compulsivo de estirar
o couro de seu pênis sucessivamente, fazendo movimentos como se tivesse
soltando pipa, ou papagaio, e era uma benção. O outro, não queria saber de nada
a não ser jogar bola, era uma benção. Ficou difícil saber o que era realmente
abençoado ou um “Puta que o pariu, isto é um cavalo dos infernos. Ah menino
tralhoto do cão!”.
É
isso, a comunicação entre as pessoas anda mudada, nossas metáforas mais
ambíguas e menos potentes. Perdemos
um importante conceito, puído por moralismos ambivalentes, ou seriam
ambidestros?
Podemos
até usar o poderoso diabo como recurso descritivo, classificatório e analítico
para nossas necessidades de exagero, escárnio e comicidades – essas todas,
imbricadas em um novelo de estéticas. Resistiremos, mas alguém ainda vai
compreender? Esse Brasil está um diabo de caretice.
2 comentários:
É esse tipo de texto que espero da tua coluna! Muito bom!
"Existem dois diabos
Só que um parou na pista
Um deles é do toque
O outro é aquele do exorcista"
A gente só lembra e se refere ao diabo do exorcista, o da ruindade, mas esquecemos que a figura do diabo é que também atiça o conhecimento, desperta a teimosia, a indagação, e planta a dúvida.
Nisso de querer amenizar a presença (mesmo que figurativa) do diabo, lembro da palavra "diacho", para não ser dito, com todas as palavras, "diabo"
Muito bom o texto! Mesmo!
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