sexta-feira, 17 de abril de 2015

Como o pentecostalismo arruinou o diabo

por:
Hermes de Sousa Veras
Cearense em devir-amazônia. Dizem que ficou sombreado na mata e voltou falando sobre profecias de fim de mundo.
Coluna: Etnoliteratura

Ananindeua, 17-08-14

Quem leu Graciliano Ramos deve saber o quanto o diabo é um ser presente em sua obra e no Nordeste de cabo a rabo e, por razões migratórias, atingindo o Norte brasileiro. Ora trazido por nordestinos ‘católicos’, ora levado diretamente pelas mais diversificadas congregações religiosas que catequizaram, não antes de serem eles mesmos atingidos, esse país.
Metáfora de grandeza, exagero, altivez, seriedade, mas também, ruindade, maledicência, malinesa e teimosia... É comparação pra diabo. O tinhoso surge sempre quando é preciso chamar atenção do ouvinte ou leitor. É, acima de tudo, uma expressão performática, hipérbole, definitivamente.
            Até uns punhados de anos atrás ainda era assim nas conversas. Meu pai, sempre quando me levava para casa da senhora minha mãe, respondia as indagações dela sobre o meu estado de saúde e se havia me alimentado com um respeitoso “Ele comeu feito um diabo”. A palavra em questão, de tamanha importância, retumbava em seus lábios, saltando da boca aceleradamente, tão célere que o “i” e o “a” aglutinavam-se com tanta intensa promiscuidade que já nem era possível distinguir uma letra da outra.
            Dona senhora minha mãe, além de ser minha progenitora, era recém-evangélica. Levava-me para o cantinho e reclamava “Onde já se viu, comparar meu filho com o capeta!”. Surpreso ficava, afinal, o ente era tão presente nas nossas palavras, um conceito tão útil e pictórico, jamais poderia suspeitá-lo como ofensivo. Mas mamãe estava em outra lógica, o tal do pentecostalismo, ou neopentecostalismo, um despotismo desses aí. Nome grandalhão e atrapalhado, chegou pra arruinar nossa família, separando os parentes em dois: os que creem e os que não creem. Também roeu com o conceito, a parábola e a metáfora do diabo. O imaginário estava em frangalhos.
            Contei pra papai. Logo ele pensava duas vezes antes de falar o tal nome. Quando eu saia correndo feito um cão com couro ardendo, chutando bola, puxando orelha de moleques ou agredindo as bonecas das minhas primas, aparecia Dona senhora minha mãe, “Esse menino é uma benção”. E papai pensava “O menino tá com o diabo”, mas não podia falar e apenas concordava. É, uma benção.
            Danado e danação também não podia mais. Tudo isso por que um ser vivo [diabo] qualquer, daqueles que possuem esgarçadas capacidades cognitivas de leitura, resolveu certo dia abrir o dicionário na parte do D e ler o tal do danado. Não lembro exatamente do que estava naquela página, mas li diversas vezes, obrigado, claro, por aqueles que mantinham o argumento “É errado chamar alguém de danado” e não abria mão disso nem com nada [o diabo]. Estava escrito mais ou menos assim: “Danado, aquele enviado pelo diabo”. Pronto, foi um alvoroço. Nenhum menino da rua era mais danado. O tinhoso poderia ser o satanás, excomungado que fosse, mas era um abençoado.
            É incrível a irradiação geográfica dessa proibição. Depois, viajando por esse Brasil imenso, e agora pentecostal, ouvia as mães comentando sobre seus filhos mal criados, “É uma benção esse menino!”.
            Por exemplo, conheci um garoto que possuía o transtorno obsessivo compulsivo de estirar o couro de seu pênis sucessivamente, fazendo movimentos como se tivesse soltando pipa, ou papagaio, e era uma benção. O outro, não queria saber de nada a não ser jogar bola, era uma benção. Ficou difícil saber o que era realmente abençoado ou um “Puta que o pariu, isto é um cavalo dos infernos. Ah menino tralhoto do cão!”.
            É isso, a comunicação entre as pessoas anda mudada, nossas metáforas mais ambíguas e menos potentes. Perdemos um importante conceito, puído por moralismos ambivalentes, ou seriam ambidestros?
            Podemos até usar o poderoso diabo como recurso descritivo, classificatório e analítico para nossas necessidades de exagero, escárnio e comicidades – essas todas, imbricadas em um novelo de estéticas. Resistiremos, mas alguém ainda vai compreender? Esse Brasil está um diabo de caretice. 





2 comentários:

CA Ribeiro Neto disse...

É esse tipo de texto que espero da tua coluna! Muito bom!

Paulo Henrique Passos disse...

"Existem dois diabos
Só que um parou na pista
Um deles é do toque
O outro é aquele do exorcista"

A gente só lembra e se refere ao diabo do exorcista, o da ruindade, mas esquecemos que a figura do diabo é que também atiça o conhecimento, desperta a teimosia, a indagação, e planta a dúvida.

Nisso de querer amenizar a presença (mesmo que figurativa) do diabo, lembro da palavra "diacho", para não ser dito, com todas as palavras, "diabo"

Muito bom o texto! Mesmo!