quinta-feira, 23 de abril de 2015

Herberto Helder: um rosto em movimento (ou o delírio das imagens)

por Fábio Rabelo Rodrigues
e-mail: fabiorr87@hotmail.com
Coluna: Linguagem para Amar e Ruminar

Sempre se me afigurou uma tarefa árdua falar sobre Herberto Helder, e neste caso corre-se o risco de pender exageradamente para o que há de mítico nos grandes nomes – e no caso Herberto o risco é dobrado –, e no entanto inevitável não me assaltar a cabeça a imagem deste que foi um dos poetas mais representativos da língua portuguesa. Hoje, 23 de abril, encerra um mês de luto sobre sua morte e este texto é o que fica de meu em sua homenagem. Porém, para falar de sua escrita, que compõe uma das mais singulares vozes da poesia em língua portuguesa, desculpo-me de antemão se a contragosto vier a recorrer-me a filosofia dos superlativos.

Pois bem, no Brasil, seu nome chega tomado de incógnitas, e se recorrermos a sítios e dossiês lusos, pouco mais saberemos. Temos a nosso dispor, aqui no Brasil apenas uma pequena parte de sua obra publicada, qual seja: “O Corpo O Luxo A Obra”, pela editora Iluminuras; “Os Passos em Volta”, pela Azougue Editorial; e “Ou o Poema Contínuo”, pela Girafa. Herberto Helder, talvez de modo que nos lembre a J. D. Salinger, viveu recluso durante a maior parte de sua vida, uma postura política que só a muito custo se pode manter. Negou entrevistas, prêmios, convites de toda espécie. Em resumo, tentou apagar-se, diluir-se em sua obra. Motivo, talvez, pelo qual se empreende atualmente, com grande alvoroço, a caça de quaisquer retratos ou narrativas a seu respeito. Rotulado por misantropo, Herberto é, talvez, o poeta português que primeiro consegue escapar da sombra de Fernando Pessoa; romper com a tradição pessoana durante meio século foi absolutamente impossível. Uma vez já comentou um crítico lusitano que Herberto em Portugal constituía a sua própria tradição, por tão singular discurso poético. A declaração não é de todo absurda, identificar a origem da linguagem herbertiana não é uma tarefa fácil.

O mito crescente ao redor da imagem do escritor é tal que dá origem a um fenômeno que lembra em muito ao descrito por Ernst H. Kantorowicz ao falar da teoria dos corpos do rei. O excedente encantatório que aglomera olhares em torno da voz de Herberto desdobra o poeta em dois: aquele cujo nome de batismo o identifica por Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira, o civil; e o segundo, conhecido pelos livros como Herberto Helder (sem acento mesmo), o que tem por obrigação desaparecer na obra, para que a própria obra nos fale.

Mas quanto ao que verdadeiramente nos interessa, pode-se dizer que sua poesia é profundamente imagética, dela escoam imagens da ordem do absurdo e do grotesco, que nos atravessa com toda violência com que uma imagem poderia se lançar, contaminando-nos a imaginação de forma absoluta, e que refutam a um só passo, para o bem de sua força poética, a saída mais fácil que a língua nos oferece, isto é, o seu dom de nos comunicar o mundo; seu texto é fechado, armado de tábuas e pedras, como que apenas nos avisando sobre o perigo de ingressar no terreno escuro, e que assim fazendo nos faz crer também ouvir um coração a palpitar, num palpitar sôfrego de amor e ódio.

Sua poesia se dedica acima de tudo à investigação das forças primitivas, convocando reiteradamente a presença de palavras-chave como mãe, irmãs, casa, águas, morte etc. etc. Estas palavras, quando surgem no texto, têm a capacidade de polarizar tudo que as cerca, funcionam quase como esferas gravitacionais, e que se repetem ao longo de toda obra. Aliás, outro dado curioso de sua obra está no exercício de tradução. A partir da década de 1970, o poeta, ao que tudo indica, começa a investigar práticas do ocultismo e do exoterismo, influências que se tornam possíveis de observar sobretudo com a publicação de “Cobra”, em 1977. Mas é após a publicação do livro de poemas “Do mundo”, em 1994, que Herberto se dedica a um gesto poético deveras curioso, o que alguns chamariam de exercício da tradução, continuando a publicação de uma série de livros, sobre o título de poemas mudados para português: Ouolof, Poemas Ameríndios e Doze Nós Numa Corda – publicados em 1997, série iniciada com “O bebedor noturno”, em 1968. O autor manifestou nítido interesse pela cultura de civilizações que ou se transformaram profundamente com a colonização europeia ou que viriam a ocupar lugar muito remoto no imaginário ocidental. Os poemas mudados para português alcançam o limiar entre a tradução e a criação.

Abaixo, seguem quatro trechos da obra do poeta, selecionadas de períodos bem distintos. Despeço-me, aqui, do poeta obscuro, o magnífico autor de “Os Passos de Volta”.

1.
Nas mãos um ramo de lâminas.
Cada palavra tem mais à frente o lado escuro,
mais noutra posição armada, as suas
zonas últimas
– ofertas do amor: a morte
e a homenagem.
(Do mundo, 1994)

2.
as manhãs começam logo com a morte das mães,
ainda oito dias antes lavavam os cabelos em alfazema
                                              cozida,
ainda oito anos depois os cabelos irrepetíveis,
todas as luzes da terra abertas em cima delas,
e então a gente enche a banheira com água fria até ao
                                              pescoço,
e tudo brilha na mesma,
brilha cegamente
(Servidões, 2013)

3.
[...]
E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.

Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior

da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.

Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.
(Excerto do poema Lugar II, 1962)

4.
[…]
Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta
no interior da terra. Somos
um reflexo dos mortos, o mundo
não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto
— as palavras, palavras.

                        A lua de coral sobe
no silêncio, por trás
da montanha em osso. É o silêncio.
O silêncio e o que se cria no silêncio.
E o que remexe no silêncio.
                                  É uma voz.

A morte.

         — Nas tardes estonteadas encontrei
uma árvore de pé, do tamanho
de um prédio. As árvores
atravessam o inverno, ressuscitam.
São as primaveras sucessivas, delicadas, as primaveras
frenéticas. As primeiras primaveras.
Primaveras que atingem o auge nos mortos.

Fecho os olhos: há outra coisa enorme.
Atrás desta vila há outra vila maior, outra
imagem maior. Há palavras
que é preciso afundar logo noutras
palavras.
         — Uma vida monstruosa.

Quando falo está ali outra coisa quando
me calo.
         Outra figura maior.

Fecho os olhos: vejo virem os gestos. O espanto
recamado de mundos caminha
desabaladamente
         — Sinto os mortos

A terra remexe. De mais longe
vem um ímpeto. Põe-se a caminho a imensa
floresta apodrecida. Ouve-se
a dor das árvores. Sente-se a dor
dos seres
                vegetativos,

ao terem de apressar a sua
vida lenta. Pôs-se a caminho
um remexer de treva. E não tardam
as dispersas primaveras
                                       uma atrás da outra

Passa no mundo a estranha ventania. Os mortos

empurram os vivos.

                                  É o tumulto,
o peso do espanto, as forças
monstruosas e cegas. A pedra espera ainda
dar flor, o som
tem um peso, há almas embrionárias
— Tudo isto se fez pelo lado de dentro
tudo isto cresceu pelo lado de dentro.
[...]
(Excerto do poema Húmus: poema-montagem, 1967)

Um comentário:

Hermes de Sousa Veras disse...

Você sempre seduz, amigo. Adorei essa crítica, logo procurarei mais a respeito do poeta. Só quero destacar duas coisas: se ele transcendeu o Pessoa, ao menos algo possuem em comum: o interesse pelo ocultismo. E segundo, você bem que poderia enviar suas críticas para revistas acadêmicas de crítica literária!