Cambono
Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Enfim, as bodas de Ivan?
Para João Almino
— O macumbeiro fugiu!
O grito do final do capítulo anterior ainda ecoa
nos meus ouvidos.
Sem falar na imagem do pobre do cabo Jacinto Gamão,
que havia sido atingido por uma notória bordoada no cocuruto, estendido no piso
do Mercado Público. Seu ressonar plácido, como uma indefesa e inofensiva
criança, não traduzia o pavor que se instalara no mundo de Licânia com tamanha
agressão à “única autoridade respeitada e constituída naquele mundaréu de
sertão”. Eram estas as palavras proferidas pelo João Américo, com seu rascante
sotaque de guardião dos pétreos conceitos naquelas plagas ribeirinhas.
— Nunca antes nesta província alguém dera cabo da
bravura do cabo Jacinto. Nunca! — soprava João Américo, com bafo de mau agouro,
dentro dos ouvidos dos mais assustados.
— Valei-nos, Senhora Sant’Anna! — rezava Dona
Therezinha Cleyde, a mais bela e pia dama das terras de Padre Antônio Tomás.
Uma chuva grossa tangeu todos para as suas casas.
Trancaram-se com trancas, chaves, tramelas e cadeados, e começaram a rezar em
latim, e em voz alta. Todos os santos e beatos foram convocados, numa fieira
infinda de rosários e terços, tarde adentro.
Um aguaceiro de fim de mundo lavava, lá fora, a
terra licaniense, impiedosa e fortemente. O dia fez-se noite.
De repente, alguém se lembrou do cabo Jacinto.
— O coitado vai ser levado por este despautério de
aguaceiro! — gritou Dona Adamir Carneiro Alves, sempre preocupada com o destino
dos mais esquecidos, abandonados e necessitados.
Bateram à porta de vários homens ditos de coragem,
com o fito deles irem salvar o cabo Jacinto da morte certa naquele dilúvio,
mas... nada. Ninguém acudia. Todos rezavam de ouvidos moucos ao que se
desenrolava do lado de fora.
— É o Apocalipse, minha gente! Arrependei-vos e
glorificai ao Senhor! — alguém, histericamente, gritava.
Quando a água já dava nas canelas, viram um vulto
cruzar a rua em direção ao Mercado. Próximo à farmácia, a água já cobria um
homem.
Musculoso, e com braçadas firmes, o desconhecido
avançava contra a corrente. Quando chegou junto à Pedra do Mercado, o homem
tomou fôlego e... mergulhou.
Passaram-se minutos, e ninguém dava sinal do
corajoso senhor. O tempo, escuro, se arrastava; apenas o barulho dos pingos da
chuva e das bicas de flandres, os jacarés. O resto metera-se dentro dum
silêncio excomungado.
— É o Apocalipse, povo de Licânia! O fim está
próximo, arrependei-vos e glorificai ao Senhor!
— Cala
a boca, mói de chifre! — era o Zé Aguiar que, depois da sétima pinga, sempre se
transformava num dos cabras mais corajosos e valentes do Vale do Acaraú.
— Vão, então, todos à merda. Morram todos, magote
de cornos! — era a tréplica do agourento pregador.
Nisto, Zé Aguiar lembrou-se da câmara de ar que
havia pendurada na sua oficina; colocou sobre ela uma meia porta de imburana,
que se encontrava nos fundos de casa, e remou, com fúria e vontade, em direção
ao local onde desmaiara o cabo Jacinto Gamão.
Quando Zé Aguiar se aproximava do lugar, o
desconhecido emergiu das águas, abraçado com o guardião da lei. Ao dar com a
canoa improvisada, ele jogou o afogado sobre a tábua e tocou a embarcação, com
braçadas firmes, para o chão firme. Lá chegando, cuidou dos primeiros socorros:
colocou o cabo de borco, fez-lhe respiração boca a boca, sentindo-lhe o pulso,
ao tempo em que intercalava sopros na boca e massagens cardíacas.
Zé Aguiar, machista como um trem, dera as costas
para a operação de resgate, com receio de ser convocado para revezar com o
nosso herói.
Mais de cinco minutos se passaram, porém o
desconhecido não desistia. Só se ouvia os sopros e a massagem cardíaca. Até a
chuva dera uma trégua. Com pouco, o resfolegar do cabo, seguido de tosse e um
acesso de vômito.
— Graças a Deus! Calma, meu senhor. Fique um pouco
de lado, respire fundo, o pior já passou. Deus foi grande, e o senhor foi
forte! — foram as palavras do socorrista.
O desconhecido pôs os olhos sobre o Zé Aguiar e
deu-lhe um aperto de mão.
— Sua embarcação improvisada, amigo, foi
imprescindível no resgate desta vítima. Meu nome é Ivan. Ivan Perobino Abuelo,
seu criado.
— Não, a sua coragem foi quem salvou o nosso cabo.
Muito prazer. Sou Zé Aguiar, mecânico e sempre ao seu dispor.
Serenada a chuvarada, reduzidos os trovões e
relâmpagos, uma corja de corajosos saiu de suas casas em busca de “salvar” o
cabo Jacinto.
— Cabo Jacinto, lá vou eu, amigo. Força que Deus é
grande!
— Jacinto, meu bom rapaz, não se desespere que
estou chegando. Segure as pontas que Deus é maior de que tudo!
— Jacinto Gamão, aqui estou, nada pode com a força
de Deus e a amizade dos homens.
Enfim, uma gritaria desgraçada. Nisto, cabo Jacinto
Gamão já recobrado de suas forças, deu um abraço no seu salvador, e, depressa,
cuidou de localizar o seu companheiro de jornada. Sim, o bom e valioso cacete
de juá. Ajustou o fundo das calças, frouxo com o molhado, e lascou o cacete no
lombo dos retardatários oportunistas, esbravejando:
— Vão pra casa, seus frouxos! Xô, xô, xô!... Se não
o cacete vai cantar no lombo de vocês, ouviram? E vocês bem sabem como o meu
porrete de juá adora amaciar as costas de gente ruim e frouxa.
Foi um Deus nos acuda de homens e mulheres
correndo, num desembesto só, no rumo de casa. Ficaram apenas os três — Ivan, Zé
Aguiar e o cabo Jacinto — a rirem desbragadamente.
Nisto, a lua cheia surgiu imperial no alto do
Serrote da Rola, cobrindo o céu diáfano de um veludo gris.
Ivan Perobino Abuelo cuidou de se despedir dos dois
novos amigos, não sem antes convidá-los para as suas bodas com a viúva
Therezinha Ferreira Valladares de Jesus.
— Com dois “h” e com dois “l”! — orgulhoso, o bom
Ivan reforçava estes detalhes; detalhes que davam, à noiva, foros de alta
estirpe.
— Não só irei — confessou Jacinto Gamão —, como
farei, pessoalmente, a segurança do casório, seu Ivan. Agora, vou acompanhá-lo
até a sua casa. O mundo anda por demais perigoso.
— E você, seu Zé Aguiar? Terei a sublime honra da
sua presença no meu enlace matrimonial? — indagou o noivo Ivan.
— E eu serei besta de faltar ao casamento do meu
novo amigo!? Só não vou se furar a minha câmara de ar, ou faltar pinga boa na
bodega do Edir!
E o riso espocou
pelas ruas de Licânia. Como se fosse a sinfonia para aquele luar tão
matrimonial nos céus de Licânia.
E quanto ao casório?!...
Calma, leitor apressado, não se apoquente. Saiba
você que a noiva, a Senhora Therezinha Ferreira Valladares de Jesus, sogra do
nosso macumbeiro, ainda nem deu a resposta ao bom e casto Ivan!
Porém, saibam todos, isso já são coisas para um
novo e emocionante capítulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário