sábado, 29 de agosto de 2015

O Eterno Retorno




Há um evento no universo dos quadrinhos que não tem qualquer credibilidade: a morte. Seja qual for o personagem, se morreu, deve voltar. Seja daqui a 3 edições ou em 15 anos. Parece que há uma disputa de bastidores entre os roteiristas e editores de quem faz a ressurreição mais improvável. E isso torna as mortes sempre menos impactantes.
Um dia desses, fui na casa de um amigo e ele jogava o Dark Souls em seu PS3. O que eu via era um festival de frustrações e xingamentos. A cada vez que você morre, volta ao início do jogo. Não há save caso seja morto. Imagina você jogando por 5 horas, aparece um monstro ridículo e você tá meio desatento pelas mensagens do whatsappdescobri como deixei de ser gamer após ter levado quase uma hora para terminar uma partida de FIFA com um amigo  e você morre. Estupidamente. Volta lá todas as casinhas, colega. Isso faz você ter MUITO CUIDADO.
Esse cuidado muitas vezes não existe nos quadrinhos. Ou é desrespeitado ou negligenciado. Escolha a melhor palavra. Lembro de uma que me indignou bastante foi a da Vespa, na Invasão Skrull. Hank Pym é substituído por um alienígena e durante a batalha clímax do super evento, descobre-se que ele havia tornado sua mulher uma bomba viva(!) que é acionada durante a batalha. Sua explosão é impedida por Thor, sendo dada por morta por anos. Recentemente descobre-se que antes da explosão, Vespa usa partículas Pym para reduzir seu tamanho em uma escala tão avassaladora que acaba em um microcosmo dentro do que vivem os seus companheiros, sendo resgatada por um grupo de Vingadores.
A história da Vespa só ilustra tantas outras ressurreições nos quadrinhos. Já passaram por semelhantes processores Super Homem, Homem Aranha, Wolverine, Thor, Batman, e vários outros que vão ficar de fora porque não é sobre o que quero escrever. Enfim, eles voltam. Sempre voltam. Mas, e se não voltassem? Será que fariam algo diferente? A própria vida de um herói é baseada em viver em plenitude mas como heróis morrem? De verdade?
Talvez isso tenha passado na cabeça de J. Michael Straczynski, roteirista do livro Silver Surfer’s Requiem. Em sua obra, o ex-arauto de Galactus visita a Terra procurando por Reed Richards em busca de uma cura para uma doença que o aflinge rapidamente. Após vários testes, Reed chega a conclusão que nada pode fazer, prevendo a iminente morte do surfista.
Em uma última passagem pela Terra, acaba cruzando com o Homem Aranha lutando contra um robô - penando - e acaba finalizando o embate rapidamente. Antes de ir embora, o Aranha entra em um interessante diálogo com o Surfista, que deseja deixar um presente para os habitantes da Terra. Gostaria de acabar com a fome, a guerra e todas as mazelas que abatem a humanidade. Após perceberem que todas suas idéias apenas moveriam os problemas de lugar, o Surfista oferece ao seu amigo a oportunidade de viajar pelo Cosmos e experimentar o que era atravessar o espaço em sua prancha, mas em seu lugar vai Mary Jane, que volta da experiência completamente iluminada de ter visto a grandeza da existência.
Com esse argumento, por um breve período de tempo, o Surfista proporciona a todos os habitantes da Terra a experiência vivida por Mary Jane. A percepção de quão melhor a humanidade pode ser, o que pode conquistar, quão irrelevante são os problemas diante da grandeza da vida.
Postaram em minha timeline no Facebook há uns dias uma entrevista com Alan Moore falando sobre como os heróis são extremamente militarizados e tal. Não que Alan Moore seja a melhor pessoa a falar de história dos quadrinhos mas eu lembro do motivo de ter cansado de ler tantos personagens e ter priorizado histórias menores, autorais, mais humanas. Quando se consome tanto mega evento, mega heróis, um milhão de personagens em 22 páginas, não há como manter a profundidade de todos. E, a meu ver, Straczynski foi lá nas entranhas do drama e jogou tudo na pele doente do SP. Ele é um dos personagens mais poderosos do universo, criado pelo próprio Galactus, o Devorador de Mundos, e ainda assim, não consegue ser salvo. Mesmo assim, não há espaço em seu coração para ódio, revolta ou amargura. Stranczyski representa um personagem consciente que apesar de todo seu poder, sua vida é finita e pequena diante de tudo. HA pergunta o motivo dela viajar numa prancha e a resposta é óbvia: se você pode estar em contato direto com os ventos do universo, por que vai se confinar em uma nave? Por que não aproveitar cada raio de luz que atravessa o universo em sua pele? Eu nunca tinha pensado nisso. Talvez Stan Lee e Jack Kirby só tenham achado legal ele ter uma prancha.
SP acaba voltando pra casa, Zenn-La, em busca de terminar seus dias entre sua família. Em sua última hora, seu planeta é visitado por Galactus que, em um último esforço, tenta salvá-lo em vão. Como recompensa aos seus serviços, o titã vela seu corpo por 3 dias.

Outra grande história que utiliza bem o recurso da morte é o Ragnarok do Thor. Nela, Loki finalmente consegue dominar Asgard, levando ao fim do reinado dos deuses, batalhas heróicas e várias baixas no panteão nórdico. Thor, buscando recursos para um contra-ataque, segue uma viagem similar à de seu pai, que sacrificou um olho por conhecimento e poder. Para superar o desafio de seu pai, Thor oferece os dois olhos, abrindo mão da visão. Dessa forma, enxerga que o Ragnarok é, na verdade, um evento cíclico e que existem deuses na escuridão que se alimentam desse evento. Thor entende que os feitos dos deuses são irrelevantes já que há a certeza de que retornarão. Como eles poderiam dizer que se sacrificavam se sabiam que voltariam? Assim, Thor rasga o tecido do destino findando o ciclo do Ragnarok e assim, se um deus morrer, não retornará.
Em 2014, li pela primeira vez A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Logo no primeiro capítulo, o autor trata do mito do eterno retorno, idealizado em textos de Nietzsche.

O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há de repetir outra vez e que essa repetição se há de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?

Depois de lida a obra de Milan, retornei ao Requiem. Tanto a passagem de Kundera tratando do mito do eterno retorno como a obra de Straczynski desejam indagar se você está fazendo tudo o que pode com sua vida. Se está pondo todo seu coração em suas escolhas.
A graphic não encaixa na cronologia oficial da Marvel. Ainda bem, pois não há necessidade de ressuscitar o SP pois ele não morre no final. Sua vida é tão brilhante e fulminante que influenciou todo o universo. Por onde passou, transformou o próximo. Esta não é uma história de super herói. É a história de um homem qualquer que fez o que pôde com o que tinha a sua frente. É o tipo de graphic que tem o poder de transformar o leitor. Nada mais humano que sacrificar sua vida pelo que lhe é mais valioso.

Nenhum comentário: