Coluna: Para Além do SMASH!
Há um evento no universo dos quadrinhos que não tem
qualquer credibilidade: a morte. Seja qual for o personagem, se morreu, deve
voltar. Seja daqui a 3 edições ou em 15 anos. Parece que há uma disputa de
bastidores entre os roteiristas e editores de quem faz a ressurreição mais
improvável. E isso torna as mortes sempre menos impactantes.
Um dia desses, fui na casa de um amigo e ele jogava o Dark
Souls em seu PS3. O
que eu via era um festival de frustrações e xingamentos. A cada vez que você
morre, volta ao início do jogo. Não há save caso seja morto. Imagina você
jogando por 5 horas, aparece um monstro ridículo e você tá meio desatento pelas
mensagens do whatsapp — descobri como deixei de ser
gamer após ter levado quase uma hora para terminar uma partida de FIFA com um
amigo — e você morre. Estupidamente. Volta lá todas as casinhas, colega. Isso faz
você ter MUITO CUIDADO.
Esse cuidado muitas vezes não existe nos quadrinhos. Ou é
desrespeitado ou negligenciado. Escolha a melhor palavra. Lembro de uma que me
indignou bastante foi a da Vespa, na Invasão Skrull. Hank Pym é substituído por
um alienígena e durante a batalha clímax do super evento, descobre-se que ele
havia tornado sua mulher uma bomba viva(!) que é acionada durante a batalha.
Sua explosão é impedida por Thor, sendo dada por morta por anos. Recentemente
descobre-se que antes da explosão, Vespa usa partículas Pym para reduzir seu
tamanho em uma escala tão avassaladora que acaba em um microcosmo dentro do que
vivem os seus companheiros, sendo resgatada por um grupo de Vingadores.
A história da Vespa só ilustra tantas outras ressurreições
nos quadrinhos. Já passaram por semelhantes processores Super Homem, Homem
Aranha, Wolverine, Thor, Batman, e vários outros que vão ficar de fora porque
não é sobre o que quero escrever. Enfim, eles voltam. Sempre voltam. Mas, e se
não voltassem? Será que fariam algo diferente? A própria vida de um herói é
baseada em viver em plenitude mas como heróis morrem? De verdade?
Talvez isso tenha passado na cabeça de J. Michael Straczynski, roteirista do livro Silver
Surfer’s Requiem. Em
sua obra, o ex-arauto de Galactus visita a Terra procurando por Reed Richards
em busca de uma cura para uma doença que o aflinge rapidamente. Após vários
testes, Reed chega a conclusão que nada pode fazer, prevendo a iminente morte
do surfista.
Em uma última passagem pela Terra, acaba cruzando com o Homem
Aranha lutando contra um robô - penando - e acaba finalizando o embate rapidamente.
Antes de ir embora, o Aranha entra em um interessante diálogo com o Surfista,
que deseja deixar um presente para os habitantes da Terra. Gostaria de acabar
com a fome, a guerra e todas as mazelas que abatem a humanidade. Após
perceberem que todas suas idéias apenas moveriam os problemas de lugar, o
Surfista oferece ao seu amigo a oportunidade de viajar pelo Cosmos e
experimentar o que era atravessar o espaço em sua prancha, mas em seu lugar vai
Mary Jane, que volta da experiência completamente iluminada de ter visto a
grandeza da existência.
Com esse argumento, por um
breve período de tempo, o Surfista proporciona a todos os habitantes da Terra a
experiência vivida por Mary Jane. A percepção de quão melhor a humanidade pode
ser, o que pode conquistar, quão irrelevante são os problemas diante da
grandeza da vida.
Postaram em minha timeline no Facebook há uns dias uma
entrevista com Alan Moore falando sobre como os heróis são extremamente
militarizados e tal. Não que Alan Moore seja a melhor pessoa a falar de
história dos quadrinhos mas eu lembro do motivo de ter cansado de ler tantos
personagens e ter priorizado histórias menores, autorais, mais humanas. Quando
se consome tanto mega evento, mega heróis, um milhão de personagens em 22
páginas, não há como manter a profundidade de todos. E, a meu ver, Straczynski
foi lá nas entranhas do drama e jogou tudo na pele doente do SP. Ele é um dos
personagens mais poderosos do universo, criado pelo próprio Galactus, o
Devorador de Mundos, e ainda assim, não consegue ser salvo. Mesmo assim, não há
espaço em seu coração para ódio, revolta ou amargura. Stranczyski representa um
personagem consciente que apesar de todo seu poder, sua vida é finita e pequena
diante de tudo. HA pergunta o motivo dela viajar numa prancha e a
resposta é óbvia: se você pode estar em contato direto com os ventos do
universo, por que vai se confinar em uma nave? Por que não aproveitar cada raio
de luz que atravessa o universo em sua pele? Eu nunca tinha pensado nisso.
Talvez Stan Lee e Jack Kirby só tenham achado legal ele ter uma prancha.
SP acaba voltando pra casa, Zenn-La, em busca de terminar
seus dias entre sua família. Em sua última hora, seu planeta é visitado por
Galactus que, em um último esforço, tenta salvá-lo em vão. Como recompensa aos
seus serviços, o titã vela seu corpo por 3 dias.
Outra grande história que utiliza bem o recurso da morte é o Ragnarok do Thor. Nela, Loki finalmente
consegue dominar Asgard, levando ao fim do reinado dos deuses, batalhas
heróicas e várias baixas no panteão nórdico. Thor, buscando recursos para um
contra-ataque, segue uma viagem similar à de seu pai, que sacrificou um olho
por conhecimento e poder. Para superar o desafio de seu pai, Thor oferece os
dois olhos, abrindo mão da visão. Dessa forma, enxerga que o Ragnarok é, na
verdade, um evento cíclico e que existem deuses na escuridão que se alimentam
desse evento. Thor entende que os feitos dos deuses são irrelevantes já que há
a certeza de que retornarão. Como eles poderiam dizer que se sacrificavam se
sabiam que voltariam? Assim, Thor rasga o tecido do destino findando o ciclo do
Ragnarok e assim, se um deus morrer, não retornará.
Em 2014, li pela primeira vez A
Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Logo no primeiro capítulo, o
autor trata do mito do eterno retorno, idealizado em textos de Nietzsche.
O eterno retorno é uma ideia
misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos
filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há de repetir outra vez e
que essa repetição se há de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que
significado terá este mito insensato?
Depois de lida a obra de Milan, retornei ao Requiem.
Tanto a passagem de Kundera tratando do mito do eterno retorno como a obra de
Straczynski desejam indagar se você está fazendo tudo o que pode com sua vida.
Se está pondo todo seu coração em suas escolhas.
A graphic não encaixa na cronologia
oficial da Marvel. Ainda bem, pois não há necessidade de ressuscitar o SP pois
ele não morre no final. Sua vida é tão brilhante e fulminante que influenciou
todo o universo. Por onde passou, transformou o próximo. Esta não é uma
história de super herói. É a história de um homem qualquer que fez o que pôde
com o que tinha a sua frente. É o tipo de graphic que tem o poder de
transformar o leitor. Nada mais humano que sacrificar sua vida pelo que lhe é
mais valioso.
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