sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Pausa Epistolar

Cambono
Clauder Arcanjo


Para Sueleide Amorim

A senhora Melancolia, como se achegou, depressa se foi. Ficaram, claro, seus rastos nos meus olhos fundos e nas minhas mãos ainda trêmulas. Mas, nada que uma boa conversa não resolva.
Saí e puxei um caco de prosa com a lua. Sim, com a lua. Adoro conversar com o chão de São Jorge. Não é coisa de aluado, nem só de apaixonado, sabia? Uma nesga de conversaria com o satélite da Terra sempre me traz o cheiro de riso e um misto de alumbramento e satisfação às minhas carnes pessimistas.
Horas depois, voltei para casa. Troquei de roupa, li um conto de Tchékhov, tomei um suco natural e, antes de me recolher, a notícia:
— Chegou, no final da tarde, esta correspondência.
Sentei-me na cadeira de balanço e enfiei os olhos na carta que me chegara.
Transcrevo-a abaixo. Penso que tal epístola tem algo a nos ensinar. É digna de uma pausa em nosso folhetim.

***

Meu caro Clauder,
Que surpresa ver-me citada na sua novela-folhetim! Mais que citada: revelada! Sim, pois nela resolveu inserir meu ponto de vista sobre um assunto cujo você iria discorrer nesta mesma novela (Aqui tomo emprestado a sintaxe de Saramago). Bem, fico honrada pelo gesto e reconhecida pela escuta. Reitero meu ponto de vista, mesmo sabendo que o gênero novela-folhetim é mais propenso à leveza literária e feito para divertir o leitor popular.
Aproveito o ensejo para me desculpar como leitora. Estou muitíssimo atrasada na leitura da dita novela, confesso. Deixei passar quase a totalidade dos capítulos... sou mesmo uma leitora relapsa! Tantas coisas para ler que nem sei por onde começar. Mas sei que eles estão todos lá, os capítulos de Cambono. Guardados e aguardando a leitura. São pacientes, seus textos. Como todos os textos. Mas como os bons textos! Esses que atravessam os meses, os anos e não fanam-se. Indiferentes ao tempo, não comportam data de vencimento. Estão sempre prontos para serem "consumidos" a qualquer momento. Eu sei que eles estão lá. Cambono me espera. E eu aguardo esse encontro particular. Travar conhecimento com as personagens, entrar na casa de cada uma, conversar com elas. Ou melhor, escutar as suas conversas, acompanhar a intriga. No entanto, veja o senhor, caro escritor, em que lençóis fui me meter... desvendando a minha "falta", os seus leitores, os verdadeiros, os assíduos, poderão — e com muita razão! — dizer: "De onde ela saiu, essa tal que mora em Nantes? Que autoridade tem ela para vir dar pitaco na nossa novela? Ela que nem os capítulos do nosso folhetim lê direito? E se acha no direito de dizer ao nosso ilustre autor o que ele deveria fazer? Que vá caçar ninho de avião, ora! Deixe a gente ler o que a gente quer ler! Queremos mesmo saber o que vai acontecer nessa noite de núpcias, sim senhor! E agora que Clauder nos falou de Viagra.... Agora, sim, é que a coisa deve ter sido quente mesmo!"
Assim imagino os seus leitores, revoltados contra mim. Isso de dar pitaco é um perigo! A gente pode angariar inimizades... mesmo sem nunca ter visto a cara de um deles... só por missivas interpostas! Eu é que não quero ser responsável por uma querela entre você, meu caro escritor, e os seus leitores. Os seus reais e fiéis leitores que estão a comprar o jornal toda semana para ler o precioso suplemento literário. Eu? Nem o jornal compro! Acesso de graça à novela, enviada religiosamente, capítulo a capítulo, pelo próprio autor. Privilégio? Sim. Um privilégio que mereceria mais apreço, confesso. Aqui faço um "mea culpa". Sou ingrata. E, ainda por cima, um tanto insolente. Querer ir de encontro com uma demanda premente do leitor que espera poder espiar, pelo buraco da fechadura, o que se passa no quarto de dormir de dona Therezinha Valladares e seu recém-esposo. Ah, a curiosidade desse povo é sem limites! Bando de voyeuristas! Pois não sabem o que se passa entre duas pessoas quando se unem pelo matrimônio? Duas pessoas adultas e consentidoras? Será preciso fazer um desenho? O que esperam descobrir de novo que já não tenham lido, ouvido, visto e até feito? Ah, terrível curiosidade! Caro escritor, basta dizer a esses seus leitores que, visto os indícios que você já revelou (administração do Viagra, olheiras do seu Ivan...), vê-se que estamos diante de um quadro bastante revelador: uma senhora que, a princípio, parecia desinteressada pela coisa, podendo ser até frígida, descobre-se, de repente, dotada de desejos avassaladores! Dona Therezinha está simplesmente vivendo uma nova adolescência em plena menopausa! Uma primavera em pleno outono. E isso não é maravilhoso? Quantas mulheres sentem tal arrebatamento de prazer já numa idade madura? Depois de uma pausa demasiado longa, ela renasceu, nossa dona Therezinha. Deixemo-la beber o mel da sua libido em paz. Afinal, ela não é uma mulher desavergonhada. Trata-se de uma senhora casada. Muito bem casada, sim senhor! E está apaixonada pelo marido. Que outra coisa poderia ser mais bonito que isso? Agora, se o seu Ivan arrepende-se por ter-se casado com ela, aí, caro leitor... aí, paciência! Ele que assuma. Eu é que não vou chorar por causa das suas olheiras. Defendo dona Therezinha. Uma mulher tem direito de sentir prazer. O gozo não deve ser somente uma prerrogativa masculina. Que sociedade machista! Ela tem o direito de expressar o seu desejo sem ser alvo de chacota, ora! Agora mostrar ao público a intimidade do seu relacionamento, não! Escancarar a porta do seu quarto de dormir, isso não! O que acontece entre quatro paredes, deve ficar entre quatro paredes. Sou contra e mantenho-me firme! Nem que tenha que assumir uma arenga com os leitores de Clauder Arcanjo. É claro que não quero que isso aconteça. Longe de mim fazer com que o ilustre escritor perca leitores. Menos ainda contribuir para que ele mergulhe em angústias ou, pior, adoeça! Dividido entre pareceres contraditórios, coitado, recebendo visitas indesejáveis? Melancólicos pensamentos? Credo, Clauder Arcanjo! Levante-se, homem! Pegue a direção da sua novela, dê um basta nesses seus leitores impertinentes e dirija seus personagens como bem lhe der na telha! Não escute conversa de encrenqueiros.
Mas, para concluir (pois essa justificativa já está se encompridando muito), eu diria que, antes de emitir algum pitaco a mais, vou ler Cambono de cabo a rabo. A ver se o juízo que fiz sobre a personagem vigora. Vou imprimir todos os capítulos (faço aqui o juramento), arregaçar as mangas e pôr a retina pra correr sobre as linhas do texto de Clauder. Tenho certeza que passarei um bom momento.
Um abraço respeitoso dessa leitora enche-saco.
Sueleide Amorim
Nantes - França

Dobro as mangas do pensamento e fico, ensimesmado, a vagar meu pensamento pelos desvãos do nada. De quando em vez, as vozes de várias personagens me sacodem:
— Não vá escutar ninguém, ouviu?
— Muito menos a de uma francesinha potiguar. Que ela fique com a prosa de lá. Merci.
— Vamos logo, sapeque a pena no rio de Cupido, deixe-se levar pelo Marquês de Sade que mora dentro de você!
— Enfim, Clauder, nos presenteie com os seus cem tons de putaria.
Com pouco, o esganiçar filosófico de uma leitora rebelde:
— Nem só de sexo vive o homem. Muito menos, a verdadeira literatura.
Meia hora depois, outra opinião acalorada. Para, logo em seguida, sem pedir licença, ser aparteada por outra, e mais outra, e mais outra. Ao final, a minha casa estava recheada de uma gritaria infernal, que, por respeito ao leitor, não a transcrevo integralmente. Seria dar asas aos talentos nefastos dos intrometidos.
Resolvo fechar este capítulo. Caso não o faça agora, nem sei do que esta turba ignara será capaz. Há, dentro de mim, o receio de capitular, de render-me ao sucesso ocasional, dando asas à voz da carne, em detrimento do sussurro do espírito.
Ficarei por aqui. Que cada um de nós sejamos juízes de nossos valores.
No entanto, leitores e leitoras, fiéis e infiéis, vou logo avisando-lhes: “Esta novela-folhetim é minha! Cambono é coisa minha. Obra, pecado, louvação e fúria deste escrevinhador de província”.
Por hoje é só, e tenho dito.
Bom domingo.

***

No céu deste abril, uma estrela insidiosa e cabreira, como a dançar no horizonte. Estaria ela a me lembrar do meu compromisso com a minha musa?
Ao abrir a porta do quarto de casal, deparo-me com a minha princesa sob os lençóis; com trajes mínimos e com um perfume de me en-lou-que-cer.
Vão dormir, seus metidos! Ninguém tem nada o que ver aqui.

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