segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Superfícies e periferias

Coluna: Etnoliteratura
por:
Hermes de Sousa Veras
Cearense em devir-Amazônia. Dizem que ficou sombreado na mata e voltou falando sobre profecias de fim de mundo.
Belém, 2 de março de 2015


O velho expectorava catarros insondáveis enquanto acompanhava o movimento da rua – joanetes enormes brigavam com as laterais de seus sapatos. Os pés ignoravam a cabeça e os olhos. Estes fitavam as garotas de jeans comprido que passavam pelo passaredo.

– É para escapar das picadas dos carapanãs e maruins, concluiu.

Nos bares as aparelhagens particulares se transformavam em bem comum. A cultura é pública, disse certa vez Geertz. Então um aluno de ciências sociais um dia interpretou essa citação do antropólogo americano como uma apologia à pirataria de CDs e DVDs. A interpretação é pública.

– Juarez! – chamou a velha do velho. Engolindo catarros verdíssimos, o velho introspectivo e tuberculoso fitou pela última vez a última moça sumir quando dobrava a esquina.

Um cachorro manco cruzou a rua mas ninguém viu. Os moleques jogando bola, improvisavam tijolos como fossem traves. Quando em vez a bola batia nos portões alheios, as mães estavam no culto protestante.

Protestando sozinho estava mesmo Pai Waldemar, fazendo pontos riscados, conversando com as folhas e desejando equilíbrio. Cantarolava uma música em homenagem à cabocla Jarina.

De madrugada, o velho já recolhido, a velha repelia peidos longos e sonoros, a fazer dueto com os derradeiros rojões lançados para o céu em comemoração ao vencedor do clássico Remo x Paysandu.

Os joanetes ardiam no frio da madrugada.

O cachorro cruzou novamente a rua, dessa vez teve com uma moto que relampejou no asfalto. O coitadinho escangalhado, o motoqueiro recomposto e seguindo o seu caminho. Já o defunto, atropelado, ficaria ali por algum tempo. Depois jogá-lo-iam num saco plástico acinzentado, meio aberto, perto do quilômetro 8 da BR 316. Seria possível acompanhar todo o seu estado de decomposição…

Antes do bisbilhoteiro adormecer, cantou a rasga mortalha.

            Ananindeua, 13-04-2014

Publicado originalmente em meu blogue pessoal:
https://hermesveras.wordpress.com/

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