quarta-feira, 21 de outubro de 2015

E assim caminha o Licânialeaks

Cambono

Clauder Arcanjo

Para Alberto Bresciani

O Fórum de Licânia foi invadido pelos homens de preto. Advogados de bancas renomadas foram convocados para defenderem os envolvidos no escândalo Licânialeaks.

Uma enxurrada de pedidos de liberdade provisória deu entrada na secretaria do Fórum, aguardando despacho do Senhor Juiz.

A vetusta secretária, Dona Esmeraldina Bastilha, estava de braço cansado de tanto carimbar o protocolo dos citados pedidos.

Um detalhe, porém, escapou à argúcia dos bacharéis: o senhor juiz havia sido abduzido, e ainda não retornara ao chão licaniense.

Nesta manhã de segunda, indiferente ao incomum movimento na comarca, Cabo Jacinto Gamão desfilava pelas ruas, imperial e ainda mais soberano do que nunca, dado ao seu zelo no cumprimento da lei; sentindo-se um Aquiles na defesa da moral e dos bons costumes.

Todos os munícipes repararam que o companheiro inseparável, o seu nodoso cacete de juá, estava mais lustroso. Uns atribuíam tal fato ao polimento com banha de carneiro; outros, mais bem informados, ao bom uso do mesmo no dia anterior, quando estava a serviço da Senhora Parcimônia.

O delegado especial designado para o caso cuidou de redobrar a vigilância. Expediu um telegrama, com linguagem cifrada, ao gabinete do Juiz Federal na capital do Estado, relatando os últimos acontecimentos.

Meio-dia, o Mercado Público foi invadido pela legião de homens de preto. Antes, eles procuraram um restaurante para o almoço. No entanto, naquela ribeira do Acaraú, restaurante não havia. Pouco depois, buscaram informação acerca do endereço do hotel da cidade; contudo, ao ficarem sabendo que a única pensão existente era de propriedade do banqueiro Raul, detentor da banca do jogo do bicho objeto do escândalo, cuidaram, por precaução, de evitá-la. Com a fome batendo-lhes na gravata preta e no bucho vazio, restou-lhes, como última e única opção, a Pedra do Mercado. Lá, os nobres defensores iriam aplacar o rói-rói na boca do estômago.

De início, estranharam o cardápio regional. No entanto, quando o primeiro deles se serviu, regiamente, de um prato fundo de buchada e outro de rabada, com a gordura sobrenadando, os outros, mais do que imediatamente, caíram de boca, servindo-se com uma gana de esfomeados.

Como sobremesa, dentre outras guloseimas: bolacha preta, doce de leite, coalhada com raspas de rapadura. Sem falar na garapa de cana.

Uma hora depois, não restava mais nada. Os homens haviam raspado o tacho das quitandas do Mercado Público.

Como o Fórum só abriria às duas da tarde, eles cuidaram de estacionarem os seus carrões nas sombras dos tamarineiros da Avenida São João. E, sem se darem conta, foram vítimas da modorra da digestão do lauto almoço, caindo numa siesta pesada e tangida por roncos homéricos.

Próximo das seis da tarde, com o trinado dos pássaros saudando a chegada da noite, acordaram.

— Meu Deus do céu, isto são horas?! — gritou o de barba mais branca.
Vamos depressa ao Fórum, antes que cerre as portas! — advertiu o menor deles, com a gravata da moda toda manchada pela gordura da panela da tripa de porco, panela esta da qual ele se apropriara ao meio-dia, com ânsias e assomos de usucapião.

Riscaram os pneus dos seus bólidos importados nos paralelepípedos, numa velocidade de quem seguia com o desespero da diarreia, rumo ao despacho do senhor juiz.

Contudo, foi em vão. Dona Esmeraldina Bastilha já trancara a porta principal do Fórum, encerrando o expediente, e caminhava, com seus passos de nambu chumbada, no rumo de casa. A tempo de assistir, na Rádio Paciência do Vale, à bênção da Hora do Ângelus.

— Minha senhora, por favor, e os nossos processos? O senhor juiz os julgou? — perguntaram-lhe, impacientes.

Ela nada os respondeu, alegando segredo de justiça. E seguiu caminho, com a empáfia do dever cumprido.

Um dos advogados, tomado pela impetuosidade da fama adquirida em processos de veiculação e mídia nacionais, atravessou-lhe os passos, exigindo uma pronta e adequada resposta:

— Senhora, você sabe com quem está falando?
— Nem que eu soubesse... eu não lhe diria, meu senhor! Guardo, repito, segredo de justiça. Se me permite...

O “famoso” bacharel não permitiu que ela seguisse, vendo-se ela cerceada do seu sagrado direito de ir e vir.

Com pouco, não mais do que de repente, surgiu o Cabo Jacinto Gamão, assuntando-a:

— Algum problema, Dona Esmeraldina?

Como a fama do Cabo rompia os limites das ribeiras do Acaraú, Dona Esmeraldina, previdente, manteve posição e compostura de cristiano silêncio.

— E quem é o senhor que se interpõe em assunto em que não é chamado, nem muito menos é de sua alçada? — despejou, imprevidente, o presunçoso bacharel de Direito.

Caro leitor, você nem pode imaginar o risco em que se metia o assanhado advogado.

No exato momento em que as orelhas do Cabo Jacinto Gamão chegavam ao ponto de ebulição, em que os seus olhos cobriam-se da pátina mercurial da fúria, e a sua mão direita dirigia-se ao cacete de juá, surgiu o nosso herói, interpondo-se e evitando o iminente e sangrento desfecho:

— Cabo Jacinto Gamão! Conte até dez. Lembre-se do conselho do Seu Zequinha Coletor: Só a parcimônia é quem mora no coração dos puros.
— E eu lá sou puro, seu Cambono! Eu nunca neguei que tenho uma carrada de pecados. Mais um, menos um... me faz pouca diferença — enquanto ele dizia, rangia os dentes, crescia o bíceps e dirigia-se ao que o ofendera. Ele, Jacinto Alvíssaras Carnetto, Cabo Jacinto Gamão, autoridade pública municipal constituída.
— Bem-aventurados os mansos... — Cambono cuidou de sacar “O Sermão da Montanha”, sabia o fraco do Cabo Jacinto por tão bela passagem bíblica.

Foi água na fervura. O pescoço de Jacinto Gamão voltou ao diâmetro normal, os olhos saíram do mercúrio para o cinza escuro, e o cacete de juá continuou — parado, manso e quieto — no seu cós.

— Chispa da minha frente, seu almofadinha. Antes que eu me arrependa, ouviu? Nunca morri de amores por janota metido a besta. E outra coisa, faz tempo que o meu cacete não amansa lombo de cabra!

Jacinto Gamão, mal fechou a boca, presenciou, acompanhado do nosso herói, o surgimento de uma nuvem de poeira a cobrir Licânia.

Não, caro leitor, não foi ventania, mas, sim, a corrida desembestada dos advogados, saindo, às pressas, do solo licaniense.

— Dona Esmeraldina, siga em paz. Você quer que eu a acompanhe até a sua residência? — inquiriu o fiel escudeiro da Lei.
— Se não o importunar, Senhor Cabo, eu gostaria da sua proteção — Dona Esmeraldina Bastilha, com os olhos marejados, cuidara de dar-lhe o braço. Com um olhar de respeito e laivos de atração e contida sedução.

A conversa logo se espalhou. Ao chegar à Cadeia Pública, o delegado especial esperava o Cabo Jacinto. Ao recebê-lo, foi logo lhe dizendo:

— Não entre em provocação, meu nobre Cabo. Preciso dos seus préstimos.
— E o senhor sabe que pode contar comigo. Mas, sabe, cabra metido a besta me tira do sério. E como me tira do sério!
— De agora em diante, por orientação minha, você sempre sairá acompanhado. Elejo, então, como seu assistente ad hoc este senhor. Como é mesmo o seu nome, cidadão?
— Adamastor Serbiatus Calvino, delegado. Por aqui, chamam-me de Cambono. Sempre ao seu dispor.

E foi assim que o nosso herói virou assistente da lei.

Nenhum comentário: