sábado, 21 de novembro de 2015

O enterro do Licânialeaks

CAMBONO

 Clauder Arcanjo


Para Dércio Braúna

Quarenta e oito horas depois, como o juiz municipal não aparecia, os advogados deram entrada na instância superior. O Tribunal de Justiça achou por bem designar um juiz especial para a comarca de Licânia, pedindo a este celeridade na análise dos processos em pauta.
No dia seguinte, aportou na cidade o novo juiz. Seu nome: Luís de Oliveira. Sujeito baixo, barrigudo, de cabelo curto e de tez morena. Bem vestido, de óculos escuros, com terno e gravata da moda, com unhas bem tratadas e cuidadas, sem falar na pasta de couro preta. Mal deu entrada no Fórum, o Sr. Luís de Oliveira já pediu à secretária Dona Esmeraldina Bastilha para que ela reunisse todos os pedidos de liberdade provisória relacionados ao escândalo Licânialeaks.
A fim de ganhar tempo, o novo juiz resolveu colher algumas informações diretamente na rua. Andara lendo um livro de sociologia de um eminente professor de uma faculdade de Paris e tomara gosto pela teoria exposta pelo célebre pesquisador francês.
Trocou a roupa por uma vestimenta mais informal e foi direto às ditas fontes primárias.
Minutos depois, ele já estava na Pedra do Mercado. Tomou um café com os provincianos, com jeito de desinteressado, colhendo, aqui e acolá, opiniões que vazavam na direção dos seus braços de autoridade, sem os licanienses se darem conta.
— Tudo coisa plantada. Não acredito nas provas, papel aceita tudo, minha gente! — falava um pequeno agricultor, sentado sobre os próprios calcanhares, enquanto pitava o seu cigarrinho de palha e bebericava o seu chá de burro.
Uma senhora, com jeito de quem não quer nada, se achegou da roda, comentando, quase em tom de fuxico:
— Rico?! Onde já se viu riqueza nesta terra, meu povo? O cabra mais endinheirado destas bandas do Acaraú não aguenta um mês de UTI na capital. Nem um mês! Quebra de abrir as bandas, podem crer. Rico?, tenham dó! Sou pobre, mas não sou burra. Tem gato nesta tuba. Ora se tem!
O sacristão, que passava com meio quilo de tripa seca e uma dúzia de banana, no rumo da Casa Paroquial, parou, ouviu o rumo da prosa, coçou a cabeçorra descrente e seguiu. Mal deu as costas, as opiniões se voltaram contra o ajudante do Padre Araquento:
— Se tem alguém que precisaria ajustar as contas com a justiça por desvio de dinheiro, este seria o... — benzeram-se, sem completar a sentença em vias de ser, pública e impiedosamente, proferida.
O juiz pediu licença, comprou uns pirulitos na bodega em frente, pôs um na boca e rumou para o Bar do Edir. Ainda não passava das nove da manhã, o dono do bar percebeu a chegada do visitante e cuidou de limpar o balcão. Nas mesinhas dispostas na calçada, uma meia dúzia de pinguços a emitirem opiniões etílicas.
— O que não me conforma foi a prisão do pobre do Seu Raul. E o coitado, segundo falam, é citado nos autos como o líder do escândalo. Desta tal Operação... Como é mesmo o nome da bicha? Licânialips... Licânialiquisis... — a palavra correta não saía e quanto mais força ele colocava na ponta dos beiços, a coisa mais se complicava, sem falar no espalhar de saliva sobre os presentes.
Um deles pediu licença e se pôs de pé para fazer uma explicação detalhada do caso.
— Se me permitem, com propriedade, explanarei tudo.
Era um daqueles bêbados metidos a intelectuais. Pelo menos se arvorava como tal, pois de quando em vez, entre uma ressaca e outra, lia os números velhos do jornal da capital. Edições estas dispostas sobre o balcão, antes de servirem para enrolar fumo em rolo, sabão, macaxeira, carne seca... Sem citar as garrafas de pinga que seguiam para a casa de alguns desses, travestidas de mel de jandaíra. “É remédio, minha filha! Dizem que é muito bom para o coração, para o pulmão, para os nervos e para os ossos. Sem falar no fogo” — asseveravam eles às suas rotundas e libidinosas companheiras.
Pois bem, o dito-cujo, já com ares de orador, limpou a garganta, professoral, e aprumou o lombo. Antes de começar o seu grandiloquente discurso, ele cuspiu grosso para o lado.
Foi uma cuspida tão violenta, que parte dela atingiu a orelha de um cachorro de rua. Pobre do cão! Ao sentir a acidez da cusparada, ganiu estrepitosamente e disparou, como se com o diabo nos couros, no rumo do Serrote da Rola. Nunca mais o desgraçado foi visto a caçar ossos na cidadezinha.
Muito bem, caro leitor, voltemos ao pinguço orador. Ouçamos o seu importante palavrório:
— Minha teoria é simples. Muito simples. Trata-se de um caso de espionagem internacional. Melhor, de uma nefasta conspiração internacional.
Os que dormiam depressa acordaram. Os acordados, mais do que depressa, se achegaram, aprumando as oiças.
— Só os tolos simplificam. Neste caso, delegado, tribunal, cabo Jacinto, Cambono... todos estão sendo inocentes úteis. E discorrerei acerca da minha tese.
Fez uma pausa, pediu uma lapada das mais brabas ao Edir e lascou a maldita para dentro dos bofes. Uma onda de calor lhe subiu pelos olhos, pelo nariz e pelos ouvidos... que ele teve vontade de gritar por sua saudosa mãezinha. Preferiu, no entanto, engolir a saliva-magma que lhe encheu, acidamente, a bocarra.
Recomposto e com a língua em brasa, o denunciante vomitou os seus argumentos:
— Lembram-se da visita daqueles senhores há dois anos. As nossas moçoilas quedaram-se de amores pelos gringos, atraídas pelo seu sotaque inglês e por tanta “delicadeza e fidalguia”. Inteligente como sou, cuidei de seguir-lhes, atentamente, os passos. Examinando o lixo da Pensão do Raul, onde os americanos se hospedaram, flagrei uma espécie de cartaz. E o que dizia o tal cartaz?
Todos em silêncio. Somente o voejar de moscas tardias.
O juiz, cauteloso e curioso, meteu-se numa mesa ao canto, pediu um guaraná Delrio, e apurou os ouvidos. A coisa sobremodo lhe interessava.
— O cartaz era sobre um cassino dos States. Sim, coisa das estranjas.
O silêncio doía nos ossos da assistência. O denunciante alteava a voz e tomava gosto ao detectar a curiosidade do seu público.
Rodou em torno da mesa, pôs os olhos na direção da Igreja Matriz e continuou:
— Sou um sujeito safo, apesar de Senhora Sant’Anna me flagrar em seguidas faltas. No entanto, juro pela minha garrafa de pinga, que temos que abrir os olhos. Só não prenderam a mundiça, a raia miúda. E por quê? Vocês já pensaram nisto?
Ninguém se atrevia a responder.
— Elementar, meus caros, não precisamos de um detetive importado. Tudo já foi por mim investigado e decifrado. Sim, este que vos fala: Sir Tripinha Bode.
Um dos mais lúcidos, querendo logo ver desvendado tanto mistério, bradou:
— Deixa de muito cerca Lourenço! Desembucha, seu bosta!
O nosso detetive da província, Sir Tripinha Bode, ainda quis assumir ares de mistério, contudo, ao perceber os olhos em fogo do que protestava e o volume do seu bíceps, anunciou, sem meias palavras:
Eles querem fazer de Licânia a Las Vegas do Nordeste. E, para isto, caros conterrâneos, os ianques tinham que banir e extirpar de nossas terras o hábito, que remonta a nossos ancestrais, de cercar o bicho. O nosso jogo do bicho é o verdadeiro alvo da tal Operação Licânialeaks.
O juiz Luís de Oliveira voltou depressa para o Fórum, correu os olhos por todos os processos e, em cada um deles, percebeu um cheiro de coisa armada. De provadas arquitetadas.
Antes de expedir os mandados de soltura, bem como de arquivamento dos processos, o juiz seguiu para a cadeia pública. Lá, ele foi recebido pelo delegado especial do caso, pelo Cabo Jacinto Gamão e pelo seu assistente ad hoc, o nosso herói Cambono.
A cadeia respirava uma paz de cemitério. O senhor juiz pediu para abrir as celas. Dentro delas, numa expectativa só, homens e mulheres amontoados, esperando o anúncio, que viria da cela mais ao fundo, sob a regência do Seu Raul, do resultado do bicho do dia.
Voltou, sem se fazer anunciado, e varou a noite exarando despachos.
De manhã, logo cedo, a cidade, festiva, recebia a boa-nova.
Na manchete principal da Gazeta de Licânia, em letras garrafais: “Licânia é do bicho!”.

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