segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O dia seguinte

CAMBONO

Clauder Arcanjo
Para Ivo Barroso


Licânia voltou a amanhecer como há anos. Os burros pastando na Praça do Poeta, as lavadeiras desfilando, rumo à Pedra da Luzia, com os seus passos cadenciados e seus sacos de roupa, os comerciantes acordando um pouco mais cedo, a fim de se prepararem para a feira (sim, era domingo), o sino da Matriz de Sant’Anna a chamar as filhas de Maria para a primeira missa dominical.
Depressa, Cambono, logo após a soltura de todos os presos na Operação Licânialeaks, sugeriu uma reunião entre a cúpula jurídica e policial envolvida. O delegado especial, o juiz, cabo Jacinto Gamão e ele, o assistente ad hoc, correram todos os pontos, analisaram todos os senões, fuçaram todos os pode-ou-não-pode, mexeram e remexeram nos considerandos e, duas horas depois, após intensas análises e elucubrações mil, decidiram por convocar a população para um ato público, na Praça do Poeta, para explicarem todos os fatos, bem como redimirem-se das suas faltas.
A amplificadora foi o meio escolhido para a convocatória. Wagner, o locutor oficial da cidade, caprichou na sua voz de barítono aposentado e soltou o verbo. De início, ateve-se ao texto que lhe chegou às mãos. Porém, após o terceiro aviso, improvisou, dando brilho de poesia àquele palavreado “tão frio e seco”.
— Licanienses, augustos filhos e filhas da valorosa Terra de Padre Antônio Tomás, logo mais, às 19 horas, monumental ato na Praça do Poeta. Não percam! Momentos de sonhos, instantes de êxtase, o reencontro da nossa comunidade com o brilho solar e indescritível da deusa Verdade. Venham, e tragam os seus familiares, parentes, vizinhos, amigos e curiosos. Meninos e meninas. Velhos e velhas. Moços e moças. Letrados e distanciados da cartilha de Dona Maroca. Homens do campo e doutores da lei. Enfim, tooooooooooda a população nascida nas ribeiras do Acaraú estará reunida para ouvir... Eu disse, ouvir a explanação das autoridades acerca do suposto escândalo Licânialeaks. Digo e repito, suposto escândalo, pois tudo não passou de mais uma escandalosa e deslavada tentativa de invasão dos ianques a esta terra gloriosa. Você, eu, ela, ele... toooooooodos estamos convidados. Para mim, homem de imprensa, voz desta comarca, um encontro inenarrável, palco do exercício da democracia direta. Licânia, hoje à noite, será Atenas rediviva. Não peeeeeeeeeeeeeeeeeeeercam! Às 19h, na Praça do Poeta. Um encontro de lei! O chão da falsidade vai tremer! Eu disse: treeeeeeeeeeeeeeemer. Ianques, go home!
Toda esta verborragia invadiu os céus de Licânia sob o fundo musical da Cavalgada das Valquírias, do alemão Wagner.
O delegado especial quis intervir naquele despautério de aviso público, mas o nosso anti-herói Cambono, habilidoso, interveio:
— Se o objetivo é juntar o maior número de licanienses, creia-me, não há melhor estratégia do que o Wagner.
— Do que “os” Wagners — acudiu o Dr. Luís de Oliveira, juiz sempre atento aos clássicos.
— Não se preocupem, não há melhor puxador de gente do que o filho da Dona Alzira. A praça vai estar lotada, podem acreditar — garantiu o cabo Jacinto.
Realmente, antes do cair da tarde, já acorria gente de todos os cantos, becos, ruas e sovacos de terra. Alguns, mais idosos, trouxeram bengalas e penicos (receosos do tempo dos discursos e não confiantes na tal da próstata). As senhoras de família mais numerosas trouxeram lanche reforçado para a prole, sabiam que nunca se escuta — nem se entende — bem de bucho vazio.
Na Hora do Ângelus, a irradiadora caprichou na Ave Maria, de Schubert. De uma forma tão piedosa e em sublime comunhão com o entardecer, que muito dos presentes foram às lágrimas. Em especial, aqueles e aquelas que se julgavam mais em falta com os mandamentos divinos.
Dezenove horas em ponto, o delegado designado para a Operação Licânialeaks pediu silêncio à plateia. Ladeado pelo juiz Dr. Luís de Oliveira e pelo cabo Jacinto Gamão. Sem meias palavras, o delegado foi direto ao assunto:
— A Justiça foi tão vítima quanto vocês. Erramos. Nenhum dos detidos na Operação Licânialeaks cometeu crime algum. Uma conspiração internacional bem urdida fez com que faltássemos com o povo de Licânia. Fomos salvos, graças à perspicácia e à inteligência do nosso juiz aqui presente. Nosso mais expresso pedido de perdão. Optamos por fazê-lo em público, porque, julgamos, é uma forma de nos retratarmos com toda esta comunidade. Defendi que era necessário que eu mesmo conduzisse tal explicação, porque coube a mim a missão de prender os supostos envolvidos. Ao cabo Jacinto Gamão, servidor público de alta cepa, não deve ser imposta nenhuma responsabilidade. Ele tão somente cumpriu com o seu dever. Seu assistente ad hoc, o senhor Adamastor Serbiatus Calvino, a quem muitos alcunham de Cambono, é um cidadão mui digno. Quero aproveitar a oportunidade para relacionar todos os erroneamente indigitados como devedores da Justiça.
E, com uma voz singular, que exalava o incenso do perdão público, foi nominando, um a um, os que se encontravam, até a noite anterior, detidos na cadeia pública:
— Senhor Raul, Coronel João Batista Ferrado, senhor Paulino Marlley, Senhor José Aguiar, Senhor José Alves...
De início, houve silêncio. Com pouco, puxado por quem não se sabe ainda, os perdoados foram saudados com um “pinicaço”. Sim, entre vivas e urras, um efusivo “pinicaço”. Todos aqueles os quais trouxeram o tal instrumento de alívio, cuidaram de esvaziá-los, e levantaram os mesmos entre a multidão, a baterem neles com suas bengalas, numa alegria de remissão incomum. De quando em vez, respingava umas gotas de urina sobre a assistência, contudo a alegria era tamanha que eles nem se importaram com tão estranho batismo.
Pompílio Traquino, o decano repórter policial da TV Xereta, cobria a matéria de longe, com um olho posto na cobertura da matéria e o outro, ressabiado que ainda estava, na direção do cacete de juá do Cabo Jacinto Gamão.
Houve um momento de muita apreensão na Praça e, diria até, de suspense, quando Seu Raul, cuja banca do jogo do bicho havia sido o foco das denúncias ou o leitmotiv para alguns dos nossos capítulos, pediu a palavra:
— Fiquei muito sentido. Muito sentido, não posso negar, quando me levaram preso. Pior, não me imaginava nunca por detrás das grades.
Uma lágrima traiçoeira escorregou pela face marcada pelas rugas do velho senhor. A plateia, como se em solidariedade, lacrimejou também.
— Lá — continuou Raul —, quando me vi cercado de vários amigos e outros por mim pouco conhecidos, descobri que a vida não se resume apenas a minha pensão nem a minha banca de jogos. Na solidão, meu povo, se conhece o tutano dos verdadeiros homens. Nesses poucos dias, senti saudade dos meus. Isto não posso negar. Sem falar da minha rede, do meu canto, da minha querida companheira.
Outra lágrima no orador. Outra lágrima na face dos presentes.
— Depois de tudo o que ouvi aqui. Depois de tudo o que eu vivi lá. Eu... perdoo. E tenho dito.
Neste exato momento, a irradiadora sapecou um forró pé de serra, na voz e na cadência da sanfona do inesquecível Dominguinhos: “Olha que isso aqui tá muito bom/ Isso aqui tá bom demais...”
Menino, foi como se um tiro na boiada. As meninas do Caneco Amassado levantaram a saia, tiraram os marmanjos para dançar... e tudo caiu numa festa braba. Rolou a noite toda. Dela, segundo relatos duvidosos dos historiadores provincianos, participaram velhos, jovens, crianças, cachorros e papagaios.
Nada melhor para expiar a dor e o sofrimento do nordestino, bem como para agir como unção de um novo tempo, de que uma boa festança.
Licânia amanheceu como se com a moral lavada e enxaguada. Os burros, na Praça do Poeta; as lavadeiras, rumo à Pedra da Luzia; os comerciantes, a se prepararem para a feira. O sino da Matriz ainda silente, como se com preguiça de acordar aquele povo depois de tão sublime conciliação.

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