quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

A invenção de Cambono

Clauder Arcanjo



Para Ronaldo Correia de Brito

Na manhã seguinte, cedinho, Licânia foi surpreendida com uma novidade. Sim, e como era bom para a pequena província quando uma novidade nova se instalava na praça, de mala e cuia!
Falo de novidade nova, sem medo de cair nas garras espinhosas do pleonasmo. Explicarei.
Como a cidade era amante declarada, com uma vetusta mancebia que já varava gerações e gerações, do falar-da-vida-dos-outros, nos últimos tempos, a coisa resvalara para as velhas e insípidas novidades: o bucho da pequena Carmosinha, que se engraçara com os olhos oceânicos do motorista do ônibus da Redenção, mal ela completara seus quinze anos, e que, meses depois, sumira da rua para, segundo as línguas das vizinhas da frente, dar cria a um pequerrucho de olhos azuis na Fazenda Lagoa das Pedras, longe dos fuçadores olhares da comunidade, mas sob os cuidados de uma ama de leite que tinha boa fama nas ribeiras do Acaraú; a cachaça desregrada do Zé Aguiar, a açular-lhe a língua, bem como incitando-lhe, cada vez mais, a paixão pelos boleros do Nelson Gonçalves; sem falar nos frequentadores assíduos do Caneco Amassado, homens que não abriam mão dos chamegos das prostitutas do velho cabaré. Pois bem, tudo isso já estava contado e recontado, lavrado e publicado nos editais salivares das pias damas de Licânia. Ou seja, eram novidades velhas, há de convir, caro leitor.
Quando a novidade nova escorreu pelos becos, ruas e vielas, os bancos da praça ganharam um fogo e uma graça incomuns. Dado que a conversaria dos homens assumiu contornos novos e estimulantes, e a política local, ainda distante da próxima eleição, deu lugar para a manchete recém-divulgada.
Quanto aos fuxicos das senhoras nas calçadas, nem sou capaz de narrar a sua incrível pujança ao se verem adubados com o húmus do noticiado. O crochê dormitava nas mãos, enquanto as línguas tricotavam, numa velocidade sônica. Melhor, supersônica. Enfim, a cidade, auspiciosamente, revivia. Uma novidade nova sempre foi o melhor bálsamo para insuflar frondoso alento ao esporte predileto de uma pequena comunidade: falar da vida do próximo.
— E qual a novidade nova? — você me indaga, impaciente.
— Será que você já foi contaminado pelo vírus de Licânia, leitor curioso?
— Ora, seu escrevinhador de uma figa, antes que eu me esqueça de dizer-lhe: vá à merda!
— Isto são modos? Francamente!
Dou-lhe as costas e volto-me para você, novo leitor, que agora se aproxima, respeitoso, desta humilde novela-folhetim. Muito bem, seja bem-vindo. O caso é o seguinte. Falarei baixo, é uma forma de prestigiar-lhe, a você que me prestigia, ao tempo em que puno esse ignóbil que me agride.
Cambono, após a experiência dos últimos capítulos, meteu-se numa tristeza incomum. Andava pelos quatro cantos, a ruminar lembranças, a escavacar ideias, a fungar filosofices mil. Muitos se aproximaram, na tentativa de o tirarem daquele poço de solitária melancolia. Tudo em vão.
Ao contrário, quanto mais os licanienses tentavam soprar-lhe alegria nos olhos e na boca, mais Cambono se recolhia. Tal qual um caramujo que se fecha dentro de sua concha, ao menor dos nossos toques.
— Deixemos ele só, com os seus botões de tristeza, minha gente. O homem, em certas ocasiões, precisa de se encontrar consigo próprio — defendeu Seu Zequinha Coletor, sempre sábio e prudente em suas considerações.
Afastaram-se todos. E o nosso Cambono ficou sob a guarda e a tutela do Cabo Jacinto Gamão.
Não se sabe bem o porquê, contudo estabelecera-se, entre os dois, uma camaradagem franca e uma respeitosa e bela amizade. Não daquelas movidas a sinais exteriores: salamaleques, bate-nas-costas e abraços de quebrar costelas; mas, sim, daquelas nutridas na botija do silêncio, amamentadas no úbere da estima, adoçadas com o mel do bem-querer. Enfim, fruto da árvore da identificação mútua, de raízes adubadas com o estrume da emoção.
Cabo Jacinto armou-lhe uma rede no alpendre da cadeia pública. De tal modo que, de dia, nosso herói poderia avistar o sol, sem ser fervido por seu calor. E, à noite, a lua jogaria o seu brilho sobre os punhos da rede. E Cambono lá ficou, dias e noites.
No sétimo dia, ele levantou-se, tomou um banho na água do pote mais frio, pediu um café com pão doce e... saiu.
Foi para a beira do rio e pôs-se a espiar o murmúrio das águas. Os olhos, longe, a escavarem cacimbas de antanho no horizonte.
Meio-dia, com o sol a pino, Cambono subiu no galho da ingazeira mais alta e, acocorado, camuflou-se, feito bicho.
Fim de tarde, desceu e atravessou o rio Acaraú, molhando os pés e o rosto, cavado agora pelas rugas da novidade nova. Com pouco, entrou na Igreja Matriz, ajoelhando-se, contrito, junto à imagem de Sant’Anna. Cambono rezava, sereno e circunspecto.
Algumas damas, pias Filhas de Maria, acompanhavam aquele, para elas, “falso devoto”. Não acreditavam na conversão de ser tão “excomungado”.
— Um acinte! Ora, um auxiliar de macumbeiro aos pés da avó de Jesus. Onde já se viu? É o fim do mundo!
O sacerdote foi convocado às pressas. Padre Araquento estava à mesa, a raspar o seu prato de coalhada, adoçada com raspas de rapadura preta, quando recebeu a convocatória das beatas.
— A Casa do Senhor está sendo profanada, Padre Araquento! — gritaram, uníssonas.
O velho pároco baixou a cabeça, ocupado que estava a sorver as derradeiras colheradas do seu maná.
— Ande, Padre Araquento, se não agirmos depressa, o Belzebu tomará o templo de Cristo! — falavam e se benziam, seguidas vezes.
Padre Araquento era homem prático. Pediu para elas se retirarem, pois ele teria uma conversa particular com Deus no seu oratório.
Na realidade, ele precisava correr ao banheiro, a coalhada com rapadura era-lhe um poderoso laxante.
De intestino vazio e de cabeça fresca, Padre Araquento rumou para a Matriz. Lá chegando, deparou-se com Cambono a orar. A própria imagem de São Francisco, em pessoa. Barba por fazer, roupas simples, cabelo revolto, os olhos tomados por uma mansidão nunca vista naquela paróquia.
Ao pôr a mão direita sobre a cabeça de Cambono, o Pastor de Cristo sentiu um quê de excelsa serenidade invadir-lhe o corpo.
— A paz do Senhor esteja conosco. Venha se confessar, meu filho! — proclamou Padre Araquento, à meia voz.
Dirigiram-se ao confessionário. Na porta lateral da nave, as Filhas de Maria a tudo seguiam.
Duas horas depois, saíram. Cambono e Padre Araquento abraçados. O que causou mais espécie às beatas foi que, antes de se despedirem, o Padre Araquento virou-se em direção a Cambono, ajoelhou-se aos seus pés e pediu-lhe, com a cabeça baixa:
— A sua bênção, meu filho!
— Que Deus o abençoe!
Cambono caminhou na direção da mata fechada e sumiu na noite. Uma revoada de pássaros canoros cobriu os céus abençoados de Licânia.
Na manhã seguinte, cedinho, Licânia foi surpreendida com esta novidade.

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