Coluna: Praia do Futuro
Ei, você existe? Geralmente não
nos questionamos isso quando conversamos com um amigo enquanto tomamos uma
cerveja gelada num bar. Ou se nós somos da geração saúde, não questionamos isso
ao nosso instrutor na academia ou qualquer outra pessoa que se exercite naquela
piscina ou quadra em que estamos. Para ser mais abrangente, não nos
questionamos sobre isso nem mesmo a qualquer estranho que vemos passando
pela rua. No entanto, por mais que pareça, a resposta não é tão óbvia se nos atrevermos
a fazer essa questão.
Aliás, se nós
formos um pouco mais exigentes, poderíamos formular uma questão um pouco mais
embaraçosa e geral: isto existe? Mais constrangedor ainda é a possibilidade de
ela ser aplicada a qualquer coisa. No entanto, quando aplicada a nós mesmos,
temos um pouco mais de tranquilidade em respondê-la. Todavia, por hora nos
fixaremos na primeira questão, nomeadamente, “Ei, você existe?”.
Primeiramente,
por que nós costumamos achar óbvia a existência do nosso colega ao lado? Ou por
que não nos divagamos sobre a existência de nossa namorada ou namorado? Ou
mesmo de nossos pais? Porque tomamos como dadas as existências. Ora, nós os
vemos, os cheiramos, conversamos com eles, etc. Temos experiências que nos
“comprovam”, nos “atestam”, que estão ali em nosso contato. Então, depois que
atestamos isso, facilmente esquecemo-nos da inquietação e seguimos nossa vida
tranquilamente.
Em segundo
lugar, por que a resposta não é tão óbvia? Para tanto, precisamos compreender
como estamos lidando com o termo “existência”.
Comumente,
quando dizemos “isto existe” e apontamos, por exemplo, para um lápis vermelho à
nossa frente, nós temos a intenção de dizer que aquele lápis vermelho existe
“fora” de nós. Temos a intenção de dizer que o lápis vermelho existe no tempo e
no espaço (tempo-espaço). De alguma forma, aquele lápis vermelho permaneceria
no tempo e no espaço ainda que nós não existíssemos mais. Isto é, se morrermos,
o lápis vermelho continua existindo. Salvo se nada o destruir, claro. Em contrapartida,
quando alguém nos diz “não, isso não existe”, tem uma intuição parecida, mas ao
inverso, a saber, esse lápis não existe “fora” de você. Ele não existe no tempo
e no espaço independentemente de você. Se você morrer, o lápis deixa de
existir. Ou seja, o lápis vermelho é “coisa da sua imaginação”.
Sendo assim,
quando perguntamos se a pessoa com quem conversamos existe, estamos a perguntar
se ela existe independentemente de nós. Indagamos se ela não é “coisa da nossa
imaginação”. Queremos saber se ela não é “nós”, mas se ela é ela mesma além de
nós. Queremos saber se há um outro – noutras ocasiões, se há um Outro. Entretanto, como percebemos
anteriormente, logo esta inquietação se vai quando atestamos sua existência
através de nossas percepções.
Mesmo assim,
ainda não é uma resposta tão óbvia como parece. Como? Vejamos.
Quando nós
temos experiências sobre qualquer coisa do mundo, dizemos que são nossas experiências. Seja o gosto do
café, seja ao ouvir Bethoveen ou Lady Gaga. Quer seja o sabor do chocolate ou o
azul do céu. Muito embora nós digamos que são experiências DE algum objeto que
julgamos estar FORA de nós, ainda assim as experiências são NOSSAS.
Consideramos as nossas experiências partes de nós. Fatalmente, as nossas
experiências são constituidoras do que nós somos.
Ao passo que
nós compreendemos esse detalhe das nossas experiências, parece interessante
quando somamos isto ao fato de como nós acreditamos obter algum conhecimento
sobre qualquer coisa fora de nós. Qualquer coisa sobre o mundo que chamamos de
mundo físico, mundo material etc. Nesse momento, serei breve para os intentos
do questionamento, todavia, este é um ponto que mereceria aprofundamento e fica
para uma outra hora.
O primeiro
passo do conhecimento que temos sobre o mundo e qualquer coisa contida nele é a
experiência. Como por exemplo, você ou aquela pessoa a quem pensou há pouco. Há
quem diga que o conhecimento também se dá por estruturas internas a nós e que
são anteriores à experiência. Não há problema algum quanto a isso, muito embora
não nos aprofundaremos nisso e nem nos comprometeremos com essa hipótese para
os fins de nosso questionamento.
Em algum
momento da nossa experimentação das sensações, nós damos a estas experiências
objetos aos quais elas são subordinadas. Como o gosto do chocolate, o qual
subordinamos ao próprio chocolate que adquirimos. Como o gosto do beijo da
pessoa que amamos, o qual subordinamos àqueles lábios que nos interessam. Sem
problema algum damos esse salto. O salto entre a nossa experiência e qualquer
coisa além de nós mesmos. Aqui reside a “desobviedade” do “ei, você existe?”.
O que nos
garante dar este salto? Todas as sensações são nossas. Constituidoras do que
chamamos de “eu”, muito provavelmente. São sensações da primeira pessoa. Nesse
sentido, estamos cercados por experiências de primeira pessoa. Como
extrapolamos a primeira pessoa? O que temos do outro são experiências nossas,
não o outro mesmo, não a primeira pessoa da terceira pessoa. Por mais que
possamos diminuir a exigência, ao invés de exigir a primeira pessoa da terceira
pessoa, e simplesmente exigirmos apenas a terceira pessoa da terceira pessoa,
ainda assim resiste a questão: é mesmo uma terceira pessoa? Afinal, as
experiências que temos se resumem a dados de nossa primeira pessoa. Como
extrapolamos a experiência que temos do lápis vermelho para a existência fora
de nós do próprio lápis vermelho se nós temos acesso ao lápis vermelho apenas
pela nossa experiência?
Nesse sentido,
o mundo é uma conjectura que salta às nossas experiências. Se não é óbvio o
salto da experiência para o mundo além da experiência, não é óbvia a existência
quer seja do lápis vermelho, quer seja de você. Ao menos para mim, eu sou minha
única garantia.O mesmo para você partindo de você. Então, para você, não é
óbvia a minha existência.
Há um caminho
de responder o questionamento, e um caminho costumeiramente trilhado por
muitos. Tratamos da questão da intersubjetividade. Ou seja, assumimos que o
outro existe, o outro assume que nós existimos, então das nossas experiências
comuns julgamos o que existe fora de nós. Se uma experiência é dita parecida
para um grande número de pessoas através de um acesso pela maior quantidade de
sentidos, damos ao objeto que supomos subordinado a tal experiência uma
existência. Se um indivíduo tem experiências que não são parecidas com a
maioria e que não são acessadas pela maioria por uma gama de sentidos, então o
objeto subordinado à experiência daquele indivíduo é coisa da cabeça deste
indivíduo. Depois de um bom tempo, isso
passa a ser tão automático que nós esquecemos o acordo que assumimos no início,
o da existência mútua, e então pensamos que podemos asseverar obviamente que o
outro existe porque nós temos experiências comuns que outros existem. Nesses
momentos vale a pena questionar: Ei, você existe?
Um comentário:
Belo texto, Caetano! Que venham mais textos como esse na sua coluna!
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