sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Divagações sobre o autógrafo - Parte I: quadrinho tem aura?


por P. J. Brandão


Entre os dias 11 e 15 de novembro de 2015, aconteceu a nona edição do Festival Internacional de Quadrinhos, o FIQ, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Poderia fazer um resumo ou mesmo uma grande resenha sobre o evento que entrou rapidamente no topo da minha lista de melhor evento que já fui na vida, mas não será nesse espaço. Os dias em que perambulei entre exposições, estandes, mesas de artistas, painéis e muita gente fã de quadrinhos que lotaram a Serraria Souza Pinto fizeram dos dias que passei em BH inesquecíveis, mas foram as filas para pegar autógrafos com os diversos artistas presentes que me fizeram ter um insight para um texto, palavras as quais você lê agora.

Quadrinho como arte(?)
"Em suma, o que é a aura (da obra de arte)? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho."
(BENJAMIM, Walter. 1955)

Nas faculdades de Comunicação desse Brasilzão, o pau que rola nas cadeiras de Teoria da Comunicação é o texto A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, do teórico alemão Walter Benjamim, publicado há 60 anos, em 1955. Confesso que nunca fui um estudante muito aplicado nas disciplinas que passaram esse texto para leitura (sim, foram mais do que uma, inclusive peço desculpas aos professores que me ensinaram tais disciplinas, pois hoje sinto muita falta desse tipo de conteúdo), mas divagando sobre o que representa o autógrafo para um fã de quadrinhos, me peguei tentando reinterpretar a leitura desse texto que até então só tinha lido uma vez na vida.

Nesse ensaio, Benjamim se debruça sobre suas considerações a cerca da chamada obra de arte e sobre como os meios de reprodução e distribuição desse material redefiniram o que é essa obra. O autor disserta sobre o conceito de autenticidade, que é uma manifestação quase energética, uma aura, que emana da obra no lugar e no momento em que o espectador também está. Antes dos discos, fitas cassetes, CDs e DVDs, era preciso ir a um espetáculo de música, um sarau, para beber a aura da obra musical. Antes da imprensa, das estampas, da litografia e da Internet, era preciso se direcionar a um museu para ver de perto os quadros dos grandes pintores.

Claro, ainda tem muita gente saindo de casa, pegando um avião, pagando ingresso para poder tirar uma selfie com a Monalisa lá no Louvre. E quem deseja ver de perto a sua banda favorita, ouve o mais novo CD em casa e gasta uma grana pra estar no frontstage no show. A aura ainda existe, a autenticidade ainda é procurada. “O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade”, afirma Benjamim. Segundo o autor, a obra de arte está envolta por uma aura, e o encontro do amante daquela arte com a obra tem um viés ritualístico. Um show, uma tarde no museu, um momento de contemplação das paisagens de uma bela cidade: tudo ritual. A obra de arte tem um valor de culto.

Caso queira, porém, você pode baixar a imagem da Monalisa em alta definição pra imprimir em um A3 ou A2, emoldurar e colocar na parede da sua casa. Você pode baixar a música do seu ídolo, ouvir pelo Youtube ou Spotify, tocar a música enquanto faz faxina ou lava a louça. Algo, no entanto, se perde nesse caminho. Segundo Benjamim, mesmo “na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”.

O que falar, portanto, de uma arte que já brota nos braços da reprodutibilidade técnica? Os quadrinhos modernos “nascem” nas páginas dos jornais (difícil estabelecer a data de nascimento exata das HQs, a manifestação desse tipo de linguagem se desenvolve através de várias décadas, até mesmo séculos, em diferentes suportes, mas vamos aceitar essa origem para esse texto em questão), na Imprensa, nos milhares de exemplares produzidos pras massas. Onde está a aura dos quadrinhos?

Quadrinho, arte sem aura
Em sua essência, por ser fruto da reprodutibilidade técnica, quadrinhos deixam de lado seu valor de culto por um outro valor. Anteriormente, as obras de arte não eram feitas para serem vistas por vários, eram feitas para serem cultuadas por poucos. Com a reprodutibilidade técnica, o valor de culto deixa lugar para o valor de exposição, e isso se dá inicialmente no âmbito da fotografia, segundo Benjamim. A fotografia leva a arte para os olhos de muitos, não mais de uns poucos que tinha que se deslocar para ver um afresco ou uma escultura em determinado templo. Logo após a fotografia, o cinema leva essa reprodutibilidade a novos níveis. O audiovisual não é uma linguagem de poucos para poucos. Para o autor alemão, o “filme é uma criação da coletividade“. Muitos precisam consumir um filme para que a obra de arte cinematográfica possa vir a ser viável, produzida.

Em 1895, os irmãos Lumière exibiam seu cinematógrafo em Paris. Era a primeira exibição de um filme gravado pelos caras que seriam considerados pais do cinema. No mesmo ano, o Menino Amarelo estreava, protagonizando as tiras da série Hogan’s Alley, no jornal New York World, uma das primeiras histórias em quadrinhos do mundo¹. Não é só nas datas que cinema e quadrinho têm muito em comum. Ambas são artes/mídias/linguagens feitas para as massas, com alto valor de exposição. São artes sem aura, sem culto, mas com grande poder de disseminação.

E o autógrafo, Pedro, onde se encaixa nisso tudo?
Bem, isso é assunto para o próximo texto(fevereiro), no qual tentarei (espero que consiga) fechar o raciocínio de como os autógrafos são a maneira que os admiradores dos quadrinhos trazem à tona a aura, o ritual e o valor de culto dessa arte que tanto amamos.



¹ Recuso-me a dizer que Yellow Kid é a primeira HQ em um mundo onde existe Angelo Agostini e seu As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de Uma Viagem à Corte, em 1869, 26 anos antes da primeira tira do Menino AmareloNem ouso afirmar que a obra de Agostini foi a primeira história em quadrinhos da História, manifestações anteriores já podem ser consideradas as primordiais. Prefiro ficar com as incertezas.

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