segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Canibal

por Alex Costa - Facebook
coluna: Em cada canto um conto



A Gabriel Oliveira, pelas manhãs antropofágicas.
   
          Era madrugada e nós caminhávamos pela mesma avenida escura e fria de outrora. Uns bichanos arrastavam o pelo eriçado pelos muros pichados e, sendo gatos, vez ou outra saltavam sobre as latas de lixo e derrubavam suas tampas, notei que ele se assustava fácil. Quantas vezes, mesmo, eu fizera aquele trajeto? Nem lembro. Não sei exato quantos homens daquela cidade esborrotada e fétida conheceram àquela avenida por minha causa. Dobramos em uma viela mal iluminada, ele respirava forte. Conhecemo-nos não havia tanto tempo. Madrugada chuvosa, em uma boate de um bairro próximo dali, sexta-feira. Subimos em uma escada externa e carcomida de ferrugem que dava acesso a um quarto – do qual eu tinha a chave aos finais de semana. Pedi que subisse à minha frente, era uma paisagem incrível as costas largas e o macacão ainda sujo de graxa daquele menino. 
        O local era pequeno, mas aconchegante. É incrivelmente doce e engraçado o nervosismo alheio. Quando se está, nega-se, mesmo com as mãos em pandeiros vivos, respiração pesada e sorrisos desleixados; ao menos esses são meus sintomas de nervosismo, embora sejam raríssimas as situações que, particularmente, me deixam trêmulo. Gostaria de dizer coisas sobre toda uma noite, noite inteira, mas foi tudo tão breve quanto se poderia imaginar – embora tudo seja tão vago quanto nada. Meia luz iluminava o quarto abafado e logo percebi que ele evitava me olhar, o que era totalmente compreensível naquela situação. Tudo já estava acertado, tudo estava sabido sobre os desejos, os olhares, cada gesto e movimento futuro, de tudo ele estava ciente. Comecei por despir-me na tentativa de encorajá-lo, mas ele só começou o processo de nudez quando eu já me encontrava completamente pelado, de costas para que ele não visse igualdade em nós – tornaria tudo ainda mais difícil.
          Senti seu corpo juvenil deitar-se sobre aquela cama pela primeira vez, cama já conhecida de outras carnes, que rangeu um tanto, vagarosamente virando-me para conhecer o corpo, antes conceito metafísico, agora materializado ao meu dispor. Não sei se me lês, não sei se o nervosismo, em excesso, alterou algo na tua sudorese, mas preciso confessar-te que foi lambendo teu corpo que descobri que o sal, às vezes, pode ser doce. Quase toda a relação foi tangida por leves suspiros e delicadeza quando necessária; intensos momentos de unhas cravadas na pele, gemidos abafados, gritinhos histéricos – baixinhos. Tu suavas, encharcou lençóis e, mais pelo final, espremia-se todo pelo meu corpo, cavalgava forte, relinchavas, animalizou-se no conhecer do meu corpo, ao qual tu te adaptaras ligeiro, muito mais do que imaginei. Terminamos. Respiração mais leve, como eu imaginei tu não demorou a banhar-se, vestir-se, sabia mesmo que tu desejarias ir embora antes mesmo do primeiro cigarro – digo, meu cigarro, pois tu não fumas. As primeiras vezes são assim, cerceadas de uma timidez que, luta vã, tento desfazer: é já de praxe e até gosto. Tentei te tocar, mas tu parecias fugidio a qualquer toque meu, tu parecias meio triste.

          Caminhou novamente ao banheiro, demorou-se um pouco. Na volta trouxe um olhar apreensivo para mim, só então entendi. “Oh, meu bem, ai está o prometido sobre a televisão, é por isso que ainda espera?” – não sabia que ele não tinha visto. Ele, menino bobo, olhou para o dinheiro onde havia apontado e me olhou novamente, meio sorriso aberto. “Não dizes nada? Nem mesmo um beijinho molhadinho eu mereço, meu anjinho?” – fiz biquinho. Ele, terminando de abotoar a camisa, veio em minha direção e grudou os lábios secos dele nos meus recém umedecidos. “Valeu mesmo, sério...” – ele disse, antes de cruzar a porta de descer às escadas, sorriso mais aberto. Sorri também, aquela vez tinha sido diferente, ficou somente a certeza de que há mais de mil formas de persuadir os corpos, os homens, as gentes; certeza minha, eu canibal.