terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Anatomia da ingratidão

por Talles Azigon
Coluna: Vinte Palavras Girando Ao Redor do Sol

        Falando de Kafka, ingrata a família do Samsa, fez uso plenos da força física, da juventude, da boa vontade, da gratidão do garoto, e quando este não podia mais proporcionar o que vinha proporcionando, quando tornou-se um estranho a não caber mais dentro do núcleo familiar, foi facilmente descartado, evitado, mal tratado.
        Precisamos conversar sobre a ingratidão, essa pantera, nem sempre estamos preparadas para ela, tanto quando ela dá seu pulo dentro da noite, somos alvo fácil, fácil é ficar em mil pedaços depois de um voraz ataque da fera.
        O grande problema é, ainda usando versos do Augusto dos anjos, o Homem que ao viver entre feras sentir enorme vontade de também ser fera. O Homem reproduz comportamentos, fazendo a roda da existência voltar para o ponto de partida, sem evoluções mínimas, sem progresso algum.
        Há alguns pecados mais prejudiciais do que outros, a ingratidão é um deles. O ingrato insere na vida do benfeitor a certeza da ineficácia e da inutilidade do bem. O ingrato muitas vezes não entende outra linguagem a não ser o da mais valia, para ele só o metal é verdadeiramente útil, e só há dividas verdadeira no campo do material, tempo, dedicação, afeto, sentimento, cuidados, carinhos, nada significam, e se o são emitidos não passam de apenas uma obrigação.
        Por esse motivo, nós filhos somos os campeões da ingratidão. A ingratidão é machista, dentro dessa lógica da sociedade ocidental capitalista onde se acredita que o macho provém o material, o ingrato há de se lembrar com mais carinho do cara que ofereceu uma ferramenta, do que da mulher que ofereceu um afago, uma escuta.
        Geralmente, o ingrato usa do discurso pronto do, se fosse pra falar não deveria ter feito, para gerar ainda mais culpa no benfeitor, dando a este a alcunha de estúpido, além de enganado. Não aceitemos, afinal, mesmo com prédios que crescem rapidamente com pessoas isoladas dentro, ainda vivemos em comunidade, e comunidade pressupõe cuidados mútuos, então, na fila do pão não seja o escroto/escrota que além de cometer ingratidão, ainda querer enfiar na cabeça da sua vítima que ela é uma interesseira, quando foi você que não respondeu ao seu papel dentro do seu núcleo de convivência.
        Para escrever tantas palavras sobre o assunto, precisaria ser um Dalai Lama. Mas se falo de algo é porque esse algo existe dentro de mim, em determinados momentos fui um verdadeiro ingrato, mas há sempre tempo para se recuperar, afinal, se até uma palavra pode ser uma faca, não vou querer ser um malabarista de facas arremessadas contra o outro a vida inteira, quando o outro é minha matéria de escrita, minha matéria de poesia. Um poeta deve tentar não ser um ingrato, um/uma poeta deve tentar a dignidade de ser humano. Poetas malditos/malditas podem ser bonitinhos/bonitinhas num romance rock in roll, porém na vida é muito escroto fazer do outro, seu objeto, sua vítima.


2 comentários:

CA Ribeiro Neto disse...

Você fala, no final, sobre o poder das palavras como faca. Então pergunto: o que seria da literatura sem as polêmicas na sociedade?

Talles Azigon disse...

Sim,concordo, seria nada

o próprio Belchior disse:
Não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém.