domingo, 21 de fevereiro de 2016

Para onde seguirá Cambono?

Clauder Arcanjo



       Não sei que caminho tomar. Aproximo-me do desfecho de Cambono, e a pena falha, a palavra entrava, o cenário se fecha... e o resultado literário descamba. Então, pouco depois, eu me vejo preso às garras desta página branca. Assobiando nonadas, assuntando vacâncias, pescando navegos.
       Até pensei, de início, em dar um tom de tragédia a estes capítulos finais. Correr com as tintas do drama, espichar o desfecho em luvas de sofrimento e crime; mas, confesso, não tenho arte para tanto. Semana passada, abri alguns livros do grande Bardo inglês, contudo Shakespeare mais me espantou de que me motivou. Rei Lear, Macbeth, Hamlet... tudo é montanha demais para este atarracado menino do semiárido nordestino.
       Outras vezes nutri assomos de comédia para fechar estas últimas horas. Passar o rodo do riso na dura e insossa vida real, varrer a tristeza das horas com a vassoura da troça; untar, com o mel ardiloso do pastiche, o pão ázimo do cotidiano. No entanto, o riso não veio, a troça fugiu por entre os meus dedos taciturnos, e o pastiche nem deu sinal no horizonte sem nuvens.
       De repente, volto ao capítulo passado. Leio e releio-o, seguidas vezes. Reparo que, dentro de mim, brota um misto de misericórdia e atração ao destino do meu anti-herói. Cambono: tão semelhante a mim, tão parecido com as minhas faltas, tão próximo dos meus parcos acertos.
       Aproximo-me dele, levando o vazio deste capítulo. Perto, bem perto, no silêncio da sua rede de dormir, a sua face fulgente e calma. Estava, absorto, a ler um texto.
       — Chegou-me há pouco. É de um escritor paraibano.
       — Qual o nome dele? — indaguei-o.
       — Hildeberto Barbosa Filho.
       E começou a lê-lo, num tom de evidente comunhão. Leitor e palavra irmanados. Sonho de todo escritor.

       O que é um poeta?        Hildeberto Barbosa Filho        Em sarau poético de que participei recentemente no Cearte — Centro Estadual de Artes —, coordenado pelas professoras Laura Moreno e Emmanuelle Coutinho, perguntaram-me o que seria um poeta. E a resposta me veio instantaneamente. Um poeta é um ser que cuida das palavras.       Há os que se dedicam à música, aos esportes, à política, a seu jardim, a sua coleção de selos, à criação de porcos, ao trato das ações filantrópicas, ao zelo pela ordem da casa e do escritório, enfim, ao apelo gratuito e misterioso que as criaturas, os objetos, as ações, as crenças e as paixões promovem na sagrada virtualidade de existir.       Pois bem: o poeta é aquela pessoa que se dedica, de alma completa e de corpo inteiro, à realidade das palavras. Aquele que zela pelo equilíbrio interior de seus elementos concretos e simbólicos, da sua espessura física e de seus significados virtuais; aquele que as utiliza explorando ao máximo o insólito valor de sua inutilidade e a graça de seu descompromisso com a urgência das trocas e dos imperativos da vida prática; aquele para quem a palavra não é simplesmente um signo, mas um corpo dotado de simetria, integridade, beleza, e em cujas entranhas coexistem os sortilégios dos cinco sentidos, pois as palavras, para os poetas, têm cheiro, sabor, tactilidade, visualidade e melodia. Enfim, para os poetas, as palavras são objetos artísticos, ou seja, tudo aquilo que os torna capazes de transmutar a experiência humana da poesia num artefato de linguagem que é o poema.       Talvez por isto, Cassiano Ricardo o distinga, mas não o separe, do homem comum de todos os dias, quando, respondendo num poema: “Que é a poesia?”, afirma: “uma ilha/cercada/ de palavras/por todos/ os lados”, e “Que é o poeta?//Um homem/que trabalha o poema/com o suor do seu rosto./Um homem/que tem fome/como qualquer outro/homem”.       Só que esse suor, resultado de árdua tarefa cotidiana, decorre da operação e do trabalho com as palavras, pois o poeta é justamente aquele que se põe em vigília permanente diante dos seus percursos, dos seus lugares, presenças, ausências e, no seu posto privilegiado, as observa em profundidade, sondando seus encaixes na alquimia dos versos, a densidade de sua carga semântica, sua flexibilidade, rapidez, lentidão, leveza, exatidão e tudo mais que consegue deixá-las frescas e originais.       E por tanto habitar — uso o verbo no sentido bíblico —, a intimidade das palavras, numa espécie de erótica verbal que não se assemelha a qualquer outro discurso, os poetas também sabem de seu silêncio, da voz inaudível que ecoa em seus diâmetros sonoros, das suas pausas secretas, de seus compassos translúcidos, de seus cálidos movimentos e da carícia orgástica que lateja em suas raízes e em suas sílabas concentradas e expandidas.       Os poetas existem, para verter, como já disse num poema, “na álgida medula dos vocábulos,/o desmedido exaspero de viver,/e moldar a sáfara véspera das coisas/incompletas nas medusas da metáfora”. Enfim, os poetas são aqueles seres solitários que têm entusiasmo, isto é, algo divino dentro de si, quando tocam e apalpam a carne das palavras e suas memoráveis cicatrizes. E, como canta Jorge de Lima, nestes três versos magistrais, “são os que gritam quando tudo cala,/são os que vibram de si estranhos coros/para a fala de Deus que é sua fala”.

       Fechou a página e me pôs os seus olhos negros. A barba grande e hirsuta, as sobrancelhas grossas, a tez marcada pelo calor e pelo sol do sertão. Adamastor Serbiatus Calvino, o nosso Cambono, transpirava uma serenidade nunca antes presenciada por mim.
       — Quem sabe você não deveria incluir um texto assim nesta novela-folhetim.
       — ...
       — O mundo seria bem melhor, sempre acreditei na força da poesia. Licânia não cabe num verso do Padre Antônio Tomás. Um soneto dele tem o peso de um planeta — arrematou.
       Cambono deu-me o texto de Hildeberto e saiu. Seguido por um revoar de pássaros canoros.
       Naquele instante, concluí: “O meu personagem ganhou vida própria. Serei digno de suas aventuras e desventuras?”
       Preciso de um tempo para me recompor.
       Para onde seguirá Cambono? — você me indaga.
     Sinceramente, caro leitor, não sei. Por hoje, fiquemos por aqui. Cambono pertence ao futuro.

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