domingo, 17 de abril de 2016

Expiando corpos

por:
Hermes de Sousa Veras
Ligeiramente sombrio. No mais, consideravelmente feliz e tropical.
Coluna: Etnoliteratura



A televisão exibia em horário nobre uma cena daquelas de novela, claro, entre um homem e uma mulher, para não se ter muito alarde. Bastante sensual e recheada de suor, suspiros e especulações, o casal se espremia, quase tornando-se uma unidade amorfa: massa de duas cabeças, quatro braços e pernas, um sexo só, comprimidos, brilhosos de felicidade. Era o paraíso, infelizmente vivido apenas nas ficções. Essa era ao menos a impressão daquela família, assustada e excitada.
Esses momentos eram os únicos sexuais para alguns membros expectadores. Todos preocupados em reprimir seus prazeres, expressando-os apenas no carnaval e expiando-os na quaresma. Mas ali, naquela cena, ocorria a sensualidade coletiva, uma orgia mental e contida.
A matriarca já não lembrava quando fora a última vez que esquadrinhou o próprio corpo. Falhava em recordar por nunca ter feito, sempre preocupada no sol para secar as roupas e no preparo dos alimentos. Os poucos momentos sexuais eram perdidos na cama com um homem vai-e-vem, vai-e-morre. Os casos extras conjugais não alcançaram o sucesso, pois os homens desejados eram do mesmo tipo. Na adolescência, apaixonou-se pela prima, mas com bastante orações e rezas, conseguiu tornar-se normal novamente, casou e transformou-se numa pessoa normal e infeliz. A cena da novela era o ápice de sua vida sensual.
O patriarca assistiu à cena coçando os escrotos. Sua cabeça não permitia maiores abstrações, apenas pensou: minha mulher não faz assim.
A filha virou o rosto, encontrando com o olhar a observação vigilante da mãe. Queria saber a reação da menina para com a cena: se aprovasse aquilo, já teria feito ou pretende fazer. Se tivesse feito, não contaria ao pai, mas xingaria com alguns impropérios o prazer da outra.
O filho, ao se deparar com os olhos confusos da mãe, o olhar macabro e estranhamente familiar do pai, e o desvio de olhar da irmã, mudou de canal. Não queria a irmã sendo estimulada por esse tipo de imaginação. Com sorte, estava passando um jornal policial: em vez de corpos despidos fazendo o melhor que podem fazer, haviam corpos despidos esfaqueados, baleados e censurados.

Para saber mais da coluna, consultar: http://vem-vertebras.blogspot.com.br/2016/02/apresentacao-tardia.html

Um comentário:

Paulo Henrique Passos disse...

A telenovela às vezes é a única forma de fabulação de muitas pessoas. O massa é quando, nessas cenas de sexo ou de beijo, fica toda a família em silêncio, sem saber o que fazer ou o que falar.