por:
Hermes de Sousa Veras
Ligeiramente sombrio. No mais, consideravelmente feliz e tropical.
Coluna: Etnoliteratura
A televisão exibia em
horário nobre uma cena daquelas de novela, claro, entre um homem e uma mulher,
para não se ter muito alarde. Bastante sensual e recheada de suor, suspiros e
especulações, o casal se espremia, quase tornando-se uma unidade amorfa: massa
de duas cabeças, quatro braços e pernas, um sexo só, comprimidos, brilhosos de
felicidade. Era o paraíso, infelizmente vivido apenas nas ficções. Essa era ao
menos a impressão daquela família, assustada e excitada.
Esses momentos eram os
únicos sexuais para alguns membros expectadores. Todos preocupados em reprimir
seus prazeres, expressando-os apenas no carnaval e expiando-os na quaresma. Mas
ali, naquela cena, ocorria a sensualidade coletiva, uma orgia mental e contida.
A matriarca já não
lembrava quando fora a última vez que esquadrinhou o próprio corpo. Falhava em
recordar por nunca ter feito, sempre preocupada no sol para secar as roupas e no
preparo dos alimentos. Os poucos momentos sexuais eram perdidos na cama com um
homem vai-e-vem, vai-e-morre. Os casos extras conjugais não alcançaram o
sucesso, pois os homens desejados eram do mesmo tipo. Na adolescência, apaixonou-se
pela prima, mas com bastante orações e rezas, conseguiu tornar-se normal
novamente, casou e transformou-se numa pessoa normal e infeliz. A cena da
novela era o ápice de sua vida sensual.
O patriarca assistiu à
cena coçando os escrotos. Sua cabeça não permitia maiores abstrações, apenas
pensou: minha mulher não faz assim.
A filha virou o rosto,
encontrando com o olhar a observação vigilante da mãe. Queria saber a reação da
menina para com a cena: se aprovasse aquilo, já teria feito ou pretende fazer. Se
tivesse feito, não contaria ao pai, mas xingaria com alguns impropérios o
prazer da outra.
O filho, ao se deparar
com os olhos confusos da mãe, o olhar macabro e estranhamente familiar do pai,
e o desvio de olhar da irmã, mudou de canal. Não queria a irmã sendo estimulada
por esse tipo de imaginação. Com sorte, estava passando um jornal policial: em
vez de corpos despidos fazendo o melhor que podem fazer, haviam corpos despidos
esfaqueados, baleados e censurados.
Para saber mais da
coluna, consultar: http://vem-vertebras.blogspot.com.br/2016/02/apresentacao-tardia.html
Um comentário:
A telenovela às vezes é a única forma de fabulação de muitas pessoas. O massa é quando, nessas cenas de sexo ou de beijo, fica toda a família em silêncio, sem saber o que fazer ou o que falar.
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