terça-feira, 21 de junho de 2016

A bênção da noite

Clauder Arcanjo
clauderarcanjo@gmail.com
Coluna: Portão de Licânia

Para Carlos Nejar

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Os preparativos para a luta se intensificaram. Homens, mulheres, velhos e crianças formavam o exército de Cambono. Arrastavam suas parcas munições em direção ao teatro de guerra que se armava no entorno da caverna do missioneiro.

Pouco importava se famélicos, pois eram movidos por uma singular força interior. Quando já se mastigou o fumo do desespero, penso eu, tudo que vem traz anúncio de esperança.

Na liderança dos estranhos combatentes, a figura mandona e decidida de Cabo Jacinto Gamão. A distribuir orientações, a montar planos de resistência, a treinar os menos experientes, a salientar o respeito ao comando único, quando do momento da batalha:

— Exército dividido é exército abatido. Nunca se esqueçam disto! — asseverava, a fungar as calças de cáqui.

Cuidara de nomear uma dúzia de tenentes. Escolhera-os confiando no seu sexto sentido. Melhor, pela fúria que emanava nos olhos de cada um deles, quando ele declarava, altissonante, que o que lhe movia era a defesa intransigente da figura santa do Cambono Conselheiro.

— Eu te nomeio guardião da fé de Cambono!

E punha-lhe, sobre a cabeçorra e o ombro direito, o seu famoso, e fornido, cacete de juá.

O cabra se levantava tal qual um cavaleiro da Távola Redonda, segundo palavrório de um cordel do cantador mossoroense Antonio Francisco.

No final da tarde, Maria Abógada entrou na caverna e, ajoelhada, orou frente à pequena imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Pai do céu, o que é que nos espera? Estaremos certos em combater contra os nossos irmãos? Na base do sangue por sangue, olho por olho...”

O silêncio do cair do dia como resposta. Quando Maria Abógada se levantou, percebeu a entrada de Cambono. Ele estava de olhos cansados, com o semblante fechado, com um quê de profunda preocupação nos olhos negros. A barba longa e revolta se assanhava com o vento aracati, quando este entrava e varria o chão de folhas daquela pequena morada.

Cambono se ajoelhou, a rezar, em voz alta:
— Senhor, conduzi os nossos passos. Fazei de mim, cada vez mais, um instrumento a serviço da vossa fé.

Com pouco, a noite caiu. Cansados, dormiram todos. Menos Cambono e Maria Abógada, que rezavam no interior da caverna.

Numa espécie de intervalo entre o sono e a vigília, eles foram visitados por Maria Santíssima. Em véu de luz, e trazendo sobre a cabeça uma coroa de estrelas, tendo serpentes aos seus pés, a Mãe de Cristo abençoou-os e soprou um pedido nos ouvidos dos dois:

— Venho aqui em nome do Pai. A ordem das hostes celestiais é evitar a terra arrasada. Com a força dos seus homens, vencerão algumas batalhas; no entanto, carros de fogo surgirão e rasgarão a mata, pondo desgraça nas terras de Licânia.

Cambono e Maria Abógada, preocupados, pediram-lhe orientação de como proceder.

— Os que estão aí fora, Virgem Maria, eram seres que arrastavam seus dias pelo mundo, sem esperança. Eles, com poucos dias em convívio solidário e harmônico, não querem mais voltar para as terras de onde vieram; locais onde viviam sob o jugo da fome e da exploração — explicou o missioneiro.
— Sim, habitavam num vale de lágrimas; concordo, meu filho.
— E como agir agora, Santa Virgem, se estão todos tão motivados para enfrentar aqueles que representam o que tanto os afligia e escravizava? — indagou Maria Abógada.

Maria deu uma orientação aos dois. Mais uma vez os abençoou, e, em seguida, subiu aos céus.

Cambono e Maria Abógada se entreolharam, pegaram a cruz e saíram. Quando puseram os pés para fora da caverna, todos os seguidores de Cambono dormiam, num sono santo, profundo e solto. Mulheres, homens, velhos, crianças e bichos de estimação. Num ronco só.

Cambono caminhava, entre eles, com o seu cajado na mão direita e a cruz na mão esquerda. Maria Abógada, portando um pequeno vaso com água benta.

Cambono abriu os braços em direção aos céus, pedindo a santificação para o seu ato, para, em seguida, ir se ajoelhando junto a cada um. De forma rápida, encostava a cruz na testa do seu seguidor, ou seguidora, e, na sequência, untava-lhe os lábios com uma gota da água benta.

Levou horas e horas ao longo da noite, varando a madrugada. Nenhum pio se ouvia no entorno daquele campo. Como única testemunha, uma estrela no oriente. Quando realizou todas as bênçãos, Cambono voltou a erguer as mãos para o alto e exclamou:

— Deus, Senhor Pai, a sorte está lançada! Que Deus nos proteja e guie os nossos passos.

Voltou para o interior da caverna, na companhia de Maria Abógada. Cambono cuidou de tirar a barba, tomar um banho no riacho que corria ao fundo, e trocar de roupa. Tirou as vestes de missioneiro, enterrando-as no chão. Minutos depois, dirigiu-se à Maria Abógada:

— Vamos. Deveremos voltar primeiro. Assim se faça a vontade de Maria Santíssima.

Caminharam no lombo de uma jumentinha cardã. Quando entraram em Licânia, a cidade estava mergulhava numa densa névoa. Quase não se via a um palmo na frente do nariz. Do interior das casas, ouvia-se um ronco apojado.

Cada um foi para o seu lar.
— Glória a tudo que vem do céu. O senhor esteja conosco!

Deitaram-se e dormiram. Ao acordarem na manhã seguinte, a cidade estava na mesma cantilena costumeira, como há anos. Os burros pastando na Praça do Poeta, as lavadeiras desfilando, rumo à Pedra da Luzia, com os seus passos cadenciados e seus sacos de roupa, os comerciantes acordando um pouco mais cedo, a fim de se prepararem para a feira (sim, era domingo), o sino da Matriz de Sant’Anna a chamar as filhas de Maria para a primeira missa dominical.

Um general, empavonado com suas medalhas e espadas reluzentes, corria as ruas da pequena província. Ao se deparar com a figura de Cambono a caminhar para a pedra do Mercado, instigou-o:

— É aqui a terra de um tal missioneiro?

Como, cabisbaixo, Cambono nada respondia, interrogou-o, irritado:

— Qual o seu nome, rapaz?
— Adamastor Serbiatus Calvino, meu senhor. Sempre ao seu dispor.

Um comentário:

Pedro Gurgel disse...

Esperando continuação...