Clauder Arcanjo
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Coluna: Portão de Licânia
Para a personagem desconhecida
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Mal começo a escrever esta página, quase na curva do fim deste romance-folhetim, e vejo-me invadido por uma sensação esquisita cá com os botões fabulativos.
Não seria náusea, porque nunca fui nauseabundo. Não seria desconsolo, porque jamais me vi preso à corrente dos lacrimejantes. Ao tempo em que, desconfio, seria o mero vexame de quem se vê perdido sem saber aonde, nem como, ir. Muito menos sair.
Sim, perdidinho da silva! Mergulhado, e atolado, no silêncio dos dicionários. Para ser bem claro: sem saber como fechar este enredo, leitor. Tenho todos os defeitos, mas, bem sabe, aqui, nestas páginas, não entrou a nódoa da mentira. Ao longo deste quase um ano, semana a semana, convivemos entre trancos e barrancos, entre afagos e coices, entre risos e arrelias, contudo, graças ao bom enredo, sempre pautados pela melhor das intenções.
— Valeu a pena?
Pelo amor de Deus, caro leitor, não me venha com essa surrada indagação de Fernando Pessoa. Seja, pelo menos uma vez na vida, um pouco mais criativo. Fujamos do lugar comum.
— Ora, ora... veja quem fala?! Você empesteou sua prosa de achados alheios e, agora, vem com esse surrado conselho. Tenha paciência, escrevinhador de província!
— Quem bate lá fora?
Ao abrir a porta, eu fui surpreendido por uma cena incomum. Todas as personagens estavam à minha porta e queriam um particular comigo.
Nos olhos deles, uma mistura de preocupação e, por que não dizer, de ira literária.
— Tenho que ser o primeiro. Permitam-me, permitam-me — era Dona Parmênides com sua reconhecida zanga.
Para quem não lembra, explicarei. A velha Parmênides Wagner Augusta é a avó materna do nosso herói.
— Entro no romance, participo com certo orgulho de alguns capítulos, sonho até com o crescimento da minha contribuição e... caio na vala da decepção. Sim, pois sumi de Cambono, sem motivos. Hoje, estou relegada a um segundo plano. Se é que existe plano nesta joça de enredo! Até adquiri uma roupa nova. Na condição de avó do protagonista... — e, não conseguiu concluir, caindo no choro franco.
— Dona Parmênides, minhas desculpas. Minhas sinceras desculpas. É que o romance tem segredos que o próprio romancista desconhece. Eu... — antes que eu concluísse, fui interrompido.
— Tudo sempre cai em desgraça. Com este romance não poderia ser diferente — era Brufaque Roma, o Zé Funéreo, sempre a prever infortúnios.
— Não, caro Zé Funéreo, há, também, nestas páginas um certo acento de troça e riso, contudo... — de imediato, tive minha voz cerceada.
— E eu, mãe do herói. Apareci tal qual uma estrela cadente e... zupt: para sumir mais depressa do que surgi.
— Dona Eutrópia Wagner Augusta Dã! Sim, a estimada e zelada filha única da dona Parmênides Wagner Augusta! Como pude me esquecer da senhora?! Realmente, foi uma falha minha com uma legítima herdeira das tradicionais dinastias da ribeira do Acaraú — mal proferi tal assunção de culpa, o tiroteio das personagens ganhou força de fogo aberto.
— Não quero aqui semear a discórdia, escrevinhador, no entanto, você há de convir que o descaso com suas personagens foi mais regra do que exceção — Lopau, o manso, juntava-se ao cordão dos descontentes.
Confesso que tive que reler o que havia escrito para rememorar a figura de Lopau. E, lá no início deste folhetim, escrevera: “Na adolescência, além do Zé Funéreo, Adamastor Serbiatus Calvino conheceu outro leal companheiro-amigo. Uma figura mansa e equilibrada, que pôs a sua cabeça avoada e preguiçosa na direção do norte verdadeiro.” Tal figura era Lopau, o manso.
Tentei ganhar tempo, fingindo atração pela lua cheia que, caprichosa, despontava no céu de Licânia:
— Que belo e romântico luar!
— O luar tem todo mês, um romance-folhetim é coisa de, no máximo no máximo, ano em ano. Logo, voltemos depressa ao chão de Cambono! — João Américo, professoral e acadêmico, pôs os pingos nos is.
— Serei, então, todo ouvidos — capitulei, sem saída.
— Deveria ter sido todo prosa, seu bundão. Quem se mete a preparador de angu tem que, no mínimo, dominar o trato do milho — o jovem Paulino Marlley vomitava seu protesto na calçada.
— Hermanos: Que la única deuda con los demás sea la del amor mutuo: el que ama al prójimo ya cumplió toda la Ley.
Graças a Deus, uma voz amiga, pensei.
— Você fala assim, Maria Abógada, porque sua participação foi crescendo ao longo da história — disparou o bardo Benarenard Péricles, Príncipe dos Poetas de Licânia.
— Olhem para a minha situação. Melhor, para o meu desespero: eu, o velho Pio Plagides Ancostta; “já varado e comido pela ferrugem dos anos e sem fogo para a menor das lutas e brincadeiras de macho e fêmea por debaixo dos lençóis da negrinha Dagmar Virgínia”. Sou convocado e servido como pão velho e dormido na prosa deste excomungado.
Senti dó do velho padeiro italiano, “perdido pelos sertões do Nordeste, resolvera criar (lá se vão quarenta anos!) a primeira padaria na Zona Norte”.
— Sou herdeiro do grande Júlio D’Alvarez Ancostta. Legítimo sucessor dos melhores padeiros da Sicília! — protestava aos berros.
Suspeito que o bom carcamano se encontrava naqueles dias; ou seja, “tangido pelos ventos assanhados e loquazes de uma meiota de Jurubeba e de duas garrafas do conhaque São João da Barra”.
No meio daquela confusão de vozes e reclames, surge uma nova voz:
— E eu, meus caros e minhas caras, que nem apareci. Quem sou eu? Sou a personagem desconhecida, aquela que falta em todo romance que tem a pretensão de se fazer eterno.
Um silêncio grosso, varrido pelo vento aracati.
— Encerre logo este capítulo, homem de Deus! Nunca li coisa mais mixuruca — era o velho Crisaldo Nepomuceno, espécie de guru de Licânia — Bem que lhe avisei, lembra: “Nunca conte história, quem conta história é historiador. Crie história, e será um homem pleno de louvor”.
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