segunda-feira, 11 de julho de 2016

O baile do menino-lebre

por Alex Costa - Facebook


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A Mateus Mesmo, atemporal. 


Certa vez me contaram a história de um menino que se transformava em lebre. Ele era negro, me disseram, mas era lebre. Vivia no quarto de um sobrado no interior seco de uma cidade. Passava o dia fugindo dos raios de sol que passam às frestas das janelas do quarto. Para fazer tempo o correr, o menino adquiriu o hábito de mudar os móveis do quarto de lugar, o fazia todos os dias, às vezes mais de uma vez e se sentia bem com isso, mudava. 

O menino quase nunca saia, quase nunca falava, morria de medo de se repetir, morria de medo de contatos, traumas de toques passados, quando ainda não era lebre. Quando ouvia barulho mais pungente vindo da rua se atrevia a colocar os olhos tímidos e sonsos pela veneziana empoeirada para espiar: às vezes era o carnaval e as pessoas fantasiadas, os gritos, as gargalhadas, as prostitutas e os negros que faziam algazarra na descida das ladeiras esburacadas; às vezes era a quadrilha vinda da quermesse, as meninas rodavam o vestido e os meninos tiravam os chapeis sincronizadamente. E o menino pensava: meu deus, pra quê essas fantasias, esses vestidos floridos, essa sincronia irritante, o que é tirar o chapéu, o que há debaixo deles? Havia algo que não casava naquilo tudo. Um menino chora. 

Transformava-se quando lhe ocorria fato específico: às vezes o menino tinha dias inteiros de pensamento-avenida, fluxo imenso e intenso. Ideias como que borbulhavam na sua mente, fotos, fatos, lembranças, cheiros, gostos, ondas de todos os passados deixavam para quebrar no mesmo dia, como que de propósito, o menino então se transformava. Era breve, piscava os olhos devido à dor de cabeça e quando abria novamente era lebre no mesmo quarto de antes, mas encolhido num canto de parede, trêmulo de medo. Nada mais se tem a fazer, resta esperar parar o tremor, esperar cair as lágrimas dos seus olhos de animal e se destransformar num sono leve. Tu sabes o peso que carrega alguém que está quase louca, quase morta?

O menino acorda, a cabeça ainda dói. Por um lado, sente-se aliviado, passou o ruim; por outro, sabe que a qualquer hora volta, basta passar novo carnaval, novas máscaras, novas algazarras nesse país que tem mais gente que mosca. O menino se desespera. Corre, pega um livro na estante e a cabeça dói ainda mais. Novamente lebre, novamente chora, novamente animal e dorme. Acorda confuso, decide não mais esperar e põe em prática a arquitetura de um plano que havia prometido não arquitetar, mas o faz. O menino, que é humano, mas não é normal, afasta-se a um canto de parede e sobe em uma cadeira de madeira, a corda já posta.

Novamente barulheira lá em baixo, são eles que não deixaram o menino brincar carnaval, nem usar vestido florido, nem máscaras nem tintura no rosto. Não havia decisão a ser tomada: era o chapéu a ser tirado às damas ou nada. Não haveria de ser dama ele. Que escolhesse! Escolheu o quarto escuro do sobrado. Segurou firme a corda, pescoço envolto sem arrependimento e lágrimas de quem sabia que agora encontraria liberdade. O menino agora virava pássaro, cantava e voava alto. Quando o acharam [sete dias após o pulo derradeiro], por todo o seu corpo roxo estava escrito multicolor: “já não caibo em mim, já não caibo em mim”.

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