segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Ano 2000

por Danilo Maia 



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Éramos apenas crianças no final dos '80. Mas, naquela época, já ansiávamos desesperadamente pelo Ano 2000!! Sabíamos que, quando esse ano chegasse, teríamos máquinas/robôssencientes; a cura do câncer e outras doenças terríveis; algum contato ou até mesmo relações diplomáticas com seres extraterrestres; o fim da fome no Mundo e, principalmente, existiriam os carros voadores!

Tudo o que eu e meu irmão mais novo queríamos era ver carros voadores. Aliás, mais do que ver, nós queríamos andar (voar?) em carros voadores!!!

Ainda teríamos que atravessar toda década de '90 para poder ter isso. O que, aos olhos de uma criança, essa espera podia ser comparada à eternidade. Mas sabíamos que valeria a pena! Afinal, qualquer sacrifício seria válido pelos carros voadores!

Portanto, com isso em mente, suportamos as músicas chatas, a programação imbecil dos meios de comunicação, as aulas infrutíferas na escola (em busca pelo tal do X que nunca era encontrado por mim nem pela maioria dos meus colegas!) e até comíamos os vegetais que nossos pais nos obrigava. Tudo isso, sempre de olho em nossa terra prometida. Quanto menos resistíssemos, mais rápido o tempo passaria.

Todas as noites, antes de dormir, meu irmão e eu, repassávamos quais seriam os métodos aplicados pelos cientistas/engenheiros/mecânicos para conseguir fazer um carro voar. Nossas hipóteses eram baseadas na Literatura Sci-fi que tínhamos acesso e na imensa imaginação que dispúnhamos. Mas não importava se fosse "batendo asas" ou com um balão preso ao teto. Desde que fosse um carro, mais pesado do que o ar, voando.

Nossos amigos também conversavam conosco sobre isso, porém, nenhum deles partilhava da mesma empolgação que nós dois.

Na metade dos anos '90, papai nos fez uma surpresa. Estávamos em férias escolares e a viagem daquele ano, seria feita de avião.

Não éramos pobres, no entanto, naquela época, para custear uma viagem de avião com toda a família, ele teve que se desdobrar em horas e mais horas extras. Tanto antes da viagem, como depois dela.

Chegamos no aeroporto e ele não parava de olhar pra gente e sorrir. Provavelmente, esperando uma reação nossa. Talvez, uma cara de fascínio ou algo do tipo. Inicialmente, não fizemos. Mas quando percebi que ele nos olhava desesperadamente e não parava de nos fotografar, entendi o que ele esperava de nós, cochichei para o meu irmão e começamos a nos mostrar bem felizes porque íamos andar de avião.

Não estávamos felizes.

O ponto é, nós não tínhamos o tolo sonho de voar. Não era isso. O que queríamos era um carro que voasse. A função do avião já era voar. Ele não fazia menos do que sua obrigação. Mas um carro não!

Sem contar a parte fantástica de algo compacto (em comparação a um avião, por exemplo) que anda pelas ruas, de repente, alçar voo.

Fomos; aproveitamos nossas férias; voltamos. Papai com vários rolos de filme para revelar, sendo a maior parte deles, usados nos aeroportos - de ida e volta - e dentro do avião. Teríamos a recordação daquele incrível momento em nossas vidas, para sempre!, segundo papai. Nunca me importei com essas fotografias.

Os '90 chegavam ao fim e já não éramos mais crianças, mas continuávamos sonhadores. Não tão sonhadores a ponto de acreditar que o tal carro voador viria. Mesmo assim, isso não nos impedia de manter esse desejo.

***

Dezembro de 1999, dia 31. Finalmente o Ano 2000 estava realmente próximo!

Meu irmão e eu combinamos de passar a virada do ano juntos. Na verdade, foi um juramento de quando ainda éramos pequenos. Mesmo sabendo que não teríamos todas as tecnologias esperadas, principalmente o carro voador, não quebramos o juramento.

E então o grande momento chegou e começou a contagem regressiva.

10
A gente se olhou.
09
Rimos.
08
Mas foi um riso nervoso.
07
Olhamos pro céu.
06
As pessoas ao nosso redor pareciam bem felizes.
05
Nós dois, não.
04
Mesmo assim, erguemos nossas taças.
03
Como se fosse ensaiado, nossos olhos se dirigiram para um carro que estava estacionado próximo da gente.
02
Não precisávamos dizer nada, mas ver aquele carro - que não podia voar - nos deu uma certeza de que o futuro que tanto discutimos em nossa infância, nunca chegaria.
01
Olhamos para o céu mais uma vez.

Silêncio.
Os fogos de artifício, apesar de brilharem no céu com toda sua magnitude, não produziram som algum. Não houve gritos de "Feliz Ano-novo!".

As pessoas começaram a se olhar sem entender o motivo do silêncio. E se desesperaram quando perceberam que não conseguiam ouvir umas as outras. Era como se qualquer som fosse impossível de ser reproduzido. Estávamos num vácuo absoluto.

Então começamos a sentir uma coisa. Um tremor.

O chão vibrava. E nossos corpos vibravam também.

De repente, veio o grande "bum". Luz, som, tremor, fogo, água, o chão se abrindo... Tudo no mesmo instante. E aí, o tempo se dilatou, se encolheu e se engoliu e expandiu!! Ficou tudo confuso.

Depois dessa catástrofe, quase toda vida foi varrida da face da terra.

Os poucos de nós, seres humanos, que sobrevivemos, nunca conseguimos descobrir o que realmente aconteceu.

Principalmente porque, no início, não conseguíamos ouvir. Surdez temporária para alguns, e permanente para muitos. E também porque o choque foi muito grande. Ninguém queria mais falar. O único som que a grande maioria emitia era apenas choro.

Muito depois, quando as pessoas conseguiram voltar a se comunicar umas com as outras, disseram que foram experimentos com bombas; outros, que os russos lançaram foguetes pelo Mundo; outros, que foi um grande terremoto; ou era a Terra finalmente cobrando com juros todos os maltratos que sofreu; que havia sido castigo de alguma divindade vingativa e mimada; e mais tantas outras suposições. O fato é que nenhuma delas conseguia fazer mais sentido do que a outra. Todas improváveis e igualmente absurdas.

Os sobreviventes viraram nômades. Ninguém ficava muito tempo no mesmo lugar. Ou não aguentavam a paisagem desoladora, além do mar de corpos espalhados por todos os lugares (era tanta gente morta que se tornou impossível enterrá-las), ou porque o próprio local não era amistoso para tentar levar a vida, terra infértil, sem água, sem animais.

Apesar de tudo, o nosso sentimento de coletividade ficou mais forte. Nos tornamos mais empáticos. Preocupados com a vida humana.

Sempre que alguém encontra outro alguém pelo caminho, essa pessoa é prontamente inserida no grupo. Não deixamos ninguém para trás. Juntos, nos tornamos, se não fortes, mas pelo menos, menos fracos.

Falamos e escutamos pouco ou nada. Mas com um único olhar, entendemos a necessidade do outro.

Atualmente, não temos mais calendário. Vivemos cada dia e pronto. O futuro não existe.

Porém, mesmo que não tenhamos nos tornado bárbaros, neste momento da minha vida, eu sempre desejo algo que me fizesse lembrar como era antes disso tudo acontecer.

As roupas, a programação idiotizante da TV, as músicas estúpidas, meus livros, filmes e séries de ficção científica, as comidas, meu professor de Matemática nos exigindo que encontrássemos o X... Queria qualquer coisa que eu não tinha mais. Menos as fotografias da viagem de avião. Delas, não sinto falta.


O meu irmão... Bom, ele ficou no Ano 2000 para sempre. O futuro que ficou no passado.

Todas as noites, quando durmo, vejo carros voadores. Centenas, milhares. E dentro de um deles, estamos meu irmão e eu, rindo muito, em um momento de felicidade explosiva, e voamos sem nenhum destino. Mas ir para algum lugar não importa, no sonho, o nosso sonho se tornou realidade.


Eu nunca quero acordar.

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