por: Alex Costa
Coluna: Textos Curingas
“Dedico este breve relato aos dignos marginalizados
pelos quinhentos anos de história que ainda é muito mal contada nas escolas
verde-amarelas”.
Há
tempos que se esvaiu de mim a dúvida de que o Brasil, todo o Brasil,
encontra-se dentro de um enorme coletivo. Se a cada parada embarca a beleza
inigualável de uma negra, sobe junto o preconceito fétido de gente ignorante;
se o travesti resolve dar a cara a tapa na procura de trabalho, abrem-se as
vias de nojo e escárnio dos puritanos, que protegem seus corpos do toque: não
querem pegar Aids, que é doença de ‘viado’. As mazelas estão em carne viva
nessa sociedade leprosa na qual nos encontramos, meus companheiros. Há um odor,
um mal-estar horrível nas relações líquidas que o homem tenta construir. Há uma
falta de respeito – mínimo – pelas escolhas que cada um toma para si, somos
todos religião. Aqui está uma palavra que me causa calafrios, religião, que de
‘religação’ nada tem. O homem tornou-se metáfora viva da religião e agora
deposita cegamente sua fé em todo o seu preconceito, racismo e homofobia
vestido de branco e com cinza na testa.
Hoje,
por sorte, apanhei um lugar de prestígio (janela) dentro de um coletivo
apinhado de gente. Pedi para levar as bolsas de duas jovens estudantes,
mochilas pesadas, que coloquei sobre meu colo e não doeu nem me arrancou
pedaço. Ao meu lado estava sentada uma senhora bem maquiada, de meia idade, e
ao seu redor, além das duas jovens que haviam me entregado suas pesadas bolsas,
haviam outras tantas pessoas que carregavam mochilas, sacolas e pastas. A
mulher olhava para todas e, confortavelmente, voltava seus olhos ao celular em
suas mãos, quando passava por fotos belíssimas nas quais a própria sorria,
abraçada a dois cachorros (dálmatas, se querem saber) e outras afagando o pelo
de um gato preto com manchas brancas. As pessoas, cansadas já às sete da manhã,
porque o brasileiro do coletivo é mesmo um povo de carteira assinada que vive
cansado, prosseguiram com suas bolsas, pastas e mochilas pesadas por toda a
viagem – ou ao menos até onde desci. Não estou aqui para vender minha imagem de
bom samaritano carregador-de-bolsas-em-coletivos-lotados, longe de mim, mas
destaquei este fato agora narrado apenas para comentar sobre o medo (sim, medo)
que tenho dessas pessoas que demasiadamente amam os animais.
Em
uma das paradas vi uma cena em especial, pois foi a cena que me motivou a
escrever este breve relato que três ou quatro pessoas lerão: no canto de um
muro, acuada, estava uma menininha de cabelo assanhado, muito engraçadinha, que
encolhia-se e esperava passivamente o soco (murro, como queiram) de um menino
um pouco maior, que acertou-lhe bem no meio das costas, dois seguidos. Ela
retorceu-se e deu um gemido. Os passageiros do ônibus riram da situação. Uma
mulher comentou: “Tome, sua égua besta! Quem mandou não correr!?”. A que ponto
chegamos? Correr? É essa a solução? O
ônibus partia e, encabulada pelos olhares e sorrisos saídos de dentro do
coletivo, a menina decidiu correr e dobrou à esquina, enquanto o menino
apanhava uma pedra do chão e preparava-se para sua caçada-brincadeira. Aquela
pedra, aos meus olhos, transformou-se brevemente em um facão, foice, em um
revólver. Por que não? Gritaram então: “Peeeega” – e houve mais risadas. Nem
sempre há salvação para os que correm.
Dedico
estas e outras cenas das várias janelas da Fortaleza grande a todas as meninas
acuadas nos pés dos muros, sem forças nem esperança para correrem, sem ver
possibilidade de escapar de seus algozes e das pedradas que o sistema
patriarcal inevitavelmente lhes proporcionará. Sentar à janela é parar para ver o lixo tóxico e fétido no qual o ser – que
se diz humano – se tornou.
4 comentários:
Não costumo seguir o tão propagado pensamento de que estamos nos piores tempos em toda a história da humanidade. Há um desejo enorme de que finalmente tenhamos chegado ao "fim dos tempos" e blá blá blá. Se é pra admitir isso, é bem mais acertado mostrar como sinais o "preconceito fétido de gente ignorante" e "as vias de nojo e escárnio dos puritanos"
Acredito que narrativas que falem de nós enquanto espécie sempre carregam esses dois lados: somos prenhes de sentidos notáveis e somos um escárnio, a podridão, o lixo. Face da mesma moeda. Prefiro me agarrar na vida, minha divindade mais cultuada. Enquanto houver existência há potencialidade de se propagar boas existências e existências ruins também. Prefiro pensar nas forças trágicas que lotam nossas vidas, e também lembrar que não somos semideuses, que por muitas vezes, nos desviamos da linha do soco...somos canalhas também! Mas isso que é lindo e humano: reconhecer a nossa fraqueza sem entretanto, nos limitar na vida. Certamente que devemos lutar sempre contra Formas Dominantes de Pensar: Racismo & Colonialismo, para ficar apenas com esses "ismos", e isso o teu texto traz como aviso e súplica. Entretanto, acredito que não devemos nos achar como o único lúcido em meio a loucos. Por isso da necessidade de se apegar a outras existências...O que disse aqui não foi para tentar inibir o teu pensamento, apenas um corte transversal nas ideias, uma reflexão em cima de reflexão e dizer: exprima, se hoje você viu esse lado da Narrativa, o excessivamente ruim (concordo com a ideia de que pessoas que exaltam os animais domésticos em excesso geralmente são as mais desumanas, mas amar os animais é essencial, assim como reconhecer nele um companheiro na Vida), foi um momento. No mais, em outra circunstâncias talvez traga a nós um texto que apesar das forças trágicas da vida reflita alguma potência da vida, em todos os seus sentidos.
Alex, andar de ônibus, hoje em dia, é estar na linha tênue do que é humanidade e o que não é.
Postar um comentário