Cambono
Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Para Martins de Vasconcelos
(In memoriam)
— Estou em dúvida, meu genro!
Você viu, o cabra é meio amarelado. E, também, não gosto de homem do pescoço
comprido; o sujeito parece mais um filho de girafa!
— Mas, minha sogra, aceite! Não
se mede um homem pelo tamanho do pescoço; e, sim, pelo tamanho do... Hum,
hum!... Do coração.
— Preciso de um tempo. Quero
pensar melhor.
— Nem pense duas vezes.
Casamento está difícil, e a senhora, pense bem, não é mais nenhuma mocinha.
Seus sessenta anos já vão mais do que longe! Sem falar, Dona Therezinha, de que
boa parte dos homens nem estão mais tão chegado à... fruta! Hum, hum!...
O diálogo entre a viúva Dona
Therezinha Ferreira Valladares de Jesus e o seu genro, o senhor Formigão Gallo
dos Anjos, já se arrastava por horas e horas. Apesar do pedido expresso de
casamento do valente e, depois do salvamento do cabo Jacinto Gamão, glorioso
Ivan Perobino Abuelo, a velha botava banca. Muita banca. Haja banca!
Com a demora da resposta, o
coitado do Ivan Abuelo metera-se numa cana braba. Isto para ver se espantava a
tristeza e a consumição da espera; incentivado, claro, pela Legião Centenária
dos Pinguços da Ribeira de Licânia (LCPRA). No presente ano, a LCPRA se
encontrava sob a batuta cachacística do Zé Aguiar, secretariado pelo incansável
levantador de copo Paulino Marlley.
Houve serenata, ao som do
violão do Manoel Alves e sob a sofrência da voz diarreica do Gazumba. Como, à
frente, sempre seguiam três litros de aguardente, a legião dos (des)ritmados só
aumentava.
Enfim, enquanto Dona Therezinha
não dava sim ao pedido de enlace matrimonial com o heroico Ivan, o pinho
lamentava-se, todas as noites, ao pé da janela da casa do seu genro macumbeiro.
Com tanta sofrência e ao som de
tanto cantor ruim, de ritmo e de voz, ninguém dormia na casa do baiano e de sua
sogra, muito menos nas residências adjacentes. Até os fregueses do macumbeiro,
sentidos e chorosos com tamanho desgosto, se esqueciam dos préstimos dos
santos, de Ogum, de Iansã e dos seus babalorixás, hipotecando solidariedade
irrestrita com o pretenso nubente.
— Ô velha banqueira! —
chateavam-se alguns, trincando os dentes.
— Vamos puxar um terço para
afrouxar as duras cordas do coração de Dona Therezinha! — sugeriam outros, com
os pés nas águas do Catolicismo.
— Vamos correr uma vaquinha
para irrigar os bolsos desta velha, minha gente! — professavam uns poucos;
estes, regidos e sempre com os olhos cúpidos pelo vil metal.
— O negócio é fazer uma macumba
grande numa encruzilhada próxima ao cemitério. Com pai de santo, galinha velha,
farofa apimentada, cachaça da Serra da Meruoca e muita, mas muita, farinha
d’água — assuntavam alguns, estes deveras mais afeitos e partidários dos
expiatórios ritos afros.
Dois dias depois, a amplificadora
passou a anunciar, mal caía o manto da noite:
— Com muito amor e carinho, o
apaixonado Ivan Perobino Abuelo oferece esta página musical para a sua bela
Therezinha Ferreira Valladares de Jesus.
E a voz de Waldick Soriano a
carpir o coração volúvel da província:
Eu não sou cachorro, não
Pra viver tão humilhado
Eu não sou cachorro, não
Para ser tão desprezado
A pequena cidade de Licânia, de
leste a oeste, de norte a sul, do bordel do Caneco Amassado à pia batismal do
Padre Araquento, das ribeiras do Acaraú ao Serrote da Rola, condoía-se, e
derramava-se em pena, com a (má) sorte do seu novo herói, o senhor Ivan
Perobino Abuelo.
Foi aí que surgiu o nosso
herói. Sim, você se esqueceu de que esta prosaica e familiar novela-folhetim
tem o seu herói?!
Pois bem, Adamastor Serbiatus
Calvino, o nosso Cambono, pediu folga do terreiro ao Formigão e,
incansavelmente, fez um trabalho de formiguinha ao pé das oiças da velha
renitente ao casório.
Dia e noite, noite e dia, não
desgrudava dos calos da pretensa noiva. Feito um teimoso carrapato, Serbiatus
Calvino soprava coisas nos ouvidos da sogra do Formigão.
De início, Dona Therezinha
respondia-lhe com uma rabissaca e dois muxoxos. Horas depois, num laborar
competente e melífluo, ela devolvia-lhe um misto de riso e contentamento, em
meio a olhares risonhos e, por que não dizê-lo, quiçá eivado de uma nesga do
fogo do erotismo.
Sete dias e sete noites se
passaram, e eis que Dona Therezinha Valladares acordou cedo, pôs sua dentadura
e proferiu o seu altissonante Grito do Ipiranga:
— Casamento ou morte!
Mais do que depressa, o noivo,
Ivan P. Abuelo, foi convocado.
Este, prevenido como quê, já
trouxe, a tiracolo, o Padre Araquento, o sacristão, as testemunhas, as alianças
e, claro, o belíssimo vestido de noiva.
Peço vênia para descrever-lhe a
cauda: era toda em renda francesa, colada ao vestido estilo semi-sereia,
incrustada com detalhes em rosas de cor marfim, cerzida com fios de ouro e
drapejada com diamantes e madrepérola. Uma vaporosa saia em tule e uma cauda
e-nor-me.
O comprimento? Melhor nem
mencionar. Por quê? Quer mesmo saber o porquê?! Porque, se eu dissesse que ela
tinha a extensão maior do que a língua de Dona Thelma Porciúncula, líder das
beatas do São João, você, claro, não acreditaria.
O casório foi rápido e mais do
que ligeiro, receio de todos de que Dona Therezinha voltasse atrás. Ivan estava
metido num fraque tão apertado, mas tão apertado, que parecia que os seus
negócios dos países baixos quase sairiam pela boca. Por causa deste aperto,
teve mais dificuldade em proferir o sim do que a vetusta viúva.
— Therezinha Ferreira
Valladares de Jesus e Ivan Perobino Abuelo, eu os abençoo e os considero marido
e mulher. E que sejam felizes para sempre! — encerrou o ato o, já cansado,
vigário de Licânia.
— Vivam os noivos! Vivam os
noivos! — gritaram todos. Em meio a um espocar de fogos de artifício.
Dito isto, a comemoração correu
frouxa e farta; foi, realmente, uma festa de arromba. Durou mais do que o
período de carnaval na Bahia.
Semana que vem, recobrado da
festança, eu estarei de volta, com os detalhes da lua de mel de tão glorioso
casal.
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