quinta-feira, 21 de maio de 2015

Festa de Arromba

Cambono

Clauder Arcanjo


Para Martins de Vasconcelos
(In memoriam)


— Estou em dúvida, meu genro! Você viu, o cabra é meio amarelado. E, também, não gosto de homem do pescoço comprido; o sujeito parece mais um filho de girafa!
— Mas, minha sogra, aceite! Não se mede um homem pelo tamanho do pescoço; e, sim, pelo tamanho do... Hum, hum!... Do coração.
— Preciso de um tempo. Quero pensar melhor.
— Nem pense duas vezes. Casamento está difícil, e a senhora, pense bem, não é mais nenhuma mocinha. Seus sessenta anos já vão mais do que longe! Sem falar, Dona Therezinha, de que boa parte dos homens nem estão mais tão chegado à... fruta! Hum, hum!...
O diálogo entre a viúva Dona Therezinha Ferreira Valladares de Jesus e o seu genro, o senhor Formigão Gallo dos Anjos, já se arrastava por horas e horas. Apesar do pedido expresso de casamento do valente e, depois do salvamento do cabo Jacinto Gamão, glorioso Ivan Perobino Abuelo, a velha botava banca. Muita banca. Haja banca!
Com a demora da resposta, o coitado do Ivan Abuelo metera-se numa cana braba. Isto para ver se espantava a tristeza e a consumição da espera; incentivado, claro, pela Legião Centenária dos Pinguços da Ribeira de Licânia (LCPRA). No presente ano, a LCPRA se encontrava sob a batuta cachacística do Zé Aguiar, secretariado pelo incansável levantador de copo Paulino Marlley.
Houve serenata, ao som do violão do Manoel Alves e sob a sofrência da voz diarreica do Gazumba. Como, à frente, sempre seguiam três litros de aguardente, a legião dos (des)ritmados só aumentava.
Enfim, enquanto Dona Therezinha não dava sim ao pedido de enlace matrimonial com o heroico Ivan, o pinho lamentava-se, todas as noites, ao pé da janela da casa do seu genro macumbeiro.
Com tanta sofrência e ao som de tanto cantor ruim, de ritmo e de voz, ninguém dormia na casa do baiano e de sua sogra, muito menos nas residências adjacentes. Até os fregueses do macumbeiro, sentidos e chorosos com tamanho desgosto, se esqueciam dos préstimos dos santos, de Ogum, de Iansã e dos seus babalorixás, hipotecando solidariedade irrestrita com o pretenso nubente.
— Ô velha banqueira! — chateavam-se alguns, trincando os dentes.
Vamos puxar um terço para afrouxar as duras cordas do coração de Dona Therezinha! — sugeriam outros, com os pés nas águas do Catolicismo.
— Vamos correr uma vaquinha para irrigar os bolsos desta velha, minha gente! — professavam uns poucos; estes, regidos e sempre com os olhos cúpidos pelo vil metal.
— O negócio é fazer uma macumba grande numa encruzilhada próxima ao cemitério. Com pai de santo, galinha velha, farofa apimentada, cachaça da Serra da Meruoca e muita, mas muita, farinha d’água — assuntavam alguns, estes deveras mais afeitos e partidários dos expiatórios ritos afros.
Dois dias depois, a amplificadora passou a anunciar, mal caía o manto da noite:
— Com muito amor e carinho, o apaixonado Ivan Perobino Abuelo oferece esta página musical para a sua bela Therezinha Ferreira Valladares de Jesus.
E a voz de Waldick Soriano a carpir o coração volúvel da província:

Eu não sou cachorro, não
Pra viver tão humilhado
Eu não sou cachorro, não
Para ser tão desprezado

A pequena cidade de Licânia, de leste a oeste, de norte a sul, do bordel do Caneco Amassado à pia batismal do Padre Araquento, das ribeiras do Acaraú ao Serrote da Rola, condoía-se, e derramava-se em pena, com a (má) sorte do seu novo herói, o senhor Ivan Perobino Abuelo.
Foi aí que surgiu o nosso herói. Sim, você se esqueceu de que esta prosaica e familiar novela-folhetim tem o seu herói?!
Pois bem, Adamastor Serbiatus Calvino, o nosso Cambono, pediu folga do terreiro ao Formigão e, incansavelmente, fez um trabalho de formiguinha ao pé das oiças da velha renitente ao casório.
Dia e noite, noite e dia, não desgrudava dos calos da pretensa noiva. Feito um teimoso carrapato, Serbiatus Calvino soprava coisas nos ouvidos da sogra do Formigão.
De início, Dona Therezinha respondia-lhe com uma rabissaca e dois muxoxos. Horas depois, num laborar competente e melífluo, ela devolvia-lhe um misto de riso e contentamento, em meio a olhares risonhos e, por que não dizê-lo, quiçá eivado de uma nesga do fogo do erotismo.
Sete dias e sete noites se passaram, e eis que Dona Therezinha Valladares acordou cedo, pôs sua dentadura e proferiu o seu altissonante Grito do Ipiranga:
— Casamento ou morte!
Mais do que depressa, o noivo, Ivan P. Abuelo, foi convocado.
Este, prevenido como quê, já trouxe, a tiracolo, o Padre Araquento, o sacristão, as testemunhas, as alianças e, claro, o belíssimo vestido de noiva.
Peço vênia para descrever-lhe a cauda: era toda em renda francesa, colada ao vestido estilo semi-sereia, incrustada com detalhes em rosas de cor marfim, cerzida com fios de ouro e drapejada com diamantes e madrepérola. Uma vaporosa saia em tule e uma cauda e-nor-me.
O comprimento? Melhor nem mencionar. Por quê? Quer mesmo saber o porquê?! Porque, se eu dissesse que ela tinha a extensão maior do que a língua de Dona Thelma Porciúncula, líder das beatas do São João, você, claro, não acreditaria.
O casório foi rápido e mais do que ligeiro, receio de todos de que Dona Therezinha voltasse atrás. Ivan estava metido num fraque tão apertado, mas tão apertado, que parecia que os seus negócios dos países baixos quase sairiam pela boca. Por causa deste aperto, teve mais dificuldade em proferir o sim do que a vetusta viúva.
— Therezinha Ferreira Valladares de Jesus e Ivan Perobino Abuelo, eu os abençoo e os considero marido e mulher. E que sejam felizes para sempre! — encerrou o ato o, já cansado, vigário de Licânia.
— Vivam os noivos! Vivam os noivos! — gritaram todos. Em meio a um espocar de fogos de artifício.
Dito isto, a comemoração correu frouxa e farta; foi, realmente, uma festa de arromba. Durou mais do que o período de carnaval na Bahia.
Semana que vem, recobrado da festança, eu estarei de volta, com os detalhes da lua de mel de tão glorioso casal.

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