terça-feira, 23 de junho de 2015

Annita Costa Malufe, por uma imagem do que fica

por Fábio Rabelo Rodrigues
E-mail: fabiorr87@hotmail.com
Coluna: Linguagem para Amar e Ruminar

Adianta-se a hora, procuro um poema e não encontro. Meia-noite, uma hora... e a imagem que me ficava à memória era de um gesto mínimo, algo como um cadarço a que se procurava amarrar num dia de chuva. Falei que escreveria sobre ela, e ouvi de minha companheira e cúmplice o conselho de que me recordasse daquele poema. Um poema em que se amarrava um cadarço num dia de chuva. E ainda que em minha memória houvesse o rastro deste poema, eu talvez já não soubesse qual fosse. Eu folheava o livro que tinha em mãos, lia trechos alternados, como se contra o corpo me batesse violentamente o lapso da memória. E chovia, sim, a chuva era a presença mais constante nos poemas de Como se caísse devagar, de Annita Costa Malufe.

E como não encontrasse o poema em que se amarra um cadarço num dia de chuva, pensei que mais proveito teria eu em dizer que não se pode encontrar coordenadas na poesia de Annita Costa Malufe, tudo é móvel. O movimento pungente nos impede de fotografar o estado das coisas, presenciamos apenas o movimento, o não-ser, pois já tudo é outra coisa. E, ao mesmo tempo, é possível pegar um poema e lê-lo a partir de qualquer parte, pois o poema é composto por planos que se alternam, imagens que vão e regressam, tornando sempre possível o retorno ao plano de início. O recurso da repetição é utilizado pela poetisa com uma precisão única, talvez como eu só tenha visto realizar João Cabral de Melo Neto, em nossa língua. Contudo, de modo distinto e com objetivos muito diversos.

A poesia de Malufe se aproxima muito mais da voz de Ana Cristina César, sua poesia não é grandiloquente, não remete a grandes questões, mas está hasteada nos gestos que passam despercebidamente; como que de uma memória longínqua e fragmentada, ela ambienta-se com registros de uma memória familiar; sua poesia é cotidiana, é mínima e é, no entanto, urgente. Há algo daquilo que Deleuze observou nos personagens dostoievskianos, um sentido de urgência. Como diria Deleuze, “Há o fogo, é necessário que eu vá” – eles se dizem: “não, há algo mais urgente. Não me moverei daqui enquanto não souber o quê”. A poesia de Annita Costa Malufe denota este momento potente, em que tudo está pelo aviso de mover-se, de mudar-se, mas que ainda não é. Seus versos vão reconstruindo um momento que pende, que gira sobre o corpo do poema, como quando nos fala de um tempo que ainda não é, está sendo.

“fico um tempo concentrada no título do livro
dire et ne pas dire
dizer e não dizer
faz sentido
uma frase escrita há um tempo atrás
quando ainda não se notava a precisão exata
de resto eram apenas sinais eram apenas
leves sinais tantas vezes revertidos em signos
mas tantas vezes apenas dispersados na atmosfera
dire et et pas dire
não se trata de ser ou não ser não se trata simplesmente
de estar ou não estar ali com as mãos nos bolsos
olhando a chuva como se ela caísse devagar
não se trata de desacelerar as gotas da chuva como se
captadas em câmera lenta
é antes o dizer e o não dizer que se atrelam
como gatos sobre o sofá misturando suas patas
dizer e não dizer pode fazer sentido ou pode então
largar sentidos sobre o colo como gatos sobre o sofá sentidos
e gatos sobre o sofá onde abandono o livro
não sem olhar pela última vez o título em cor-de-laranja
dire et ne pas dire
em que talvez alguma simultaneidade esteja sugerida ou pressuposta

ela poderia entrar sem tocar a campainha
a porta estaria aberta apenas encostada
e foi devagar que os passos iam sendo ouvidos
sem eco sem reverberação o som era pouco
havia um sentido de reencontro e um sentido de
mostrar uma fotografia ou uma lembrança de viagem
o livro que ele tinha nas mãos era o mesmo
dire et ne pas dire
e tudo parecia tão natural que era esta mesma a palavra que vinha
mesmo sem ser dita tudo era naturalmente
a mesma coisa o mesmo lugar comum
como se aquele fosse o livro de cabeceira o livro que os acompanhava
dire et ne pas dire
uma e outra coisa como partes de uma mesma tendência comum
entre eles tudo ficava dito e não dito
dizer e não dizer era o que dava o sentido
o que renovava o sentido de um reencontro sempre
incompleto reiterando-se
no mesmo lugar
comum
era esta a palavra que vinha mesmo sem ser dita”


Aliás, eu poderia dizer que a associação a Deleuze não seria nem de longe aleatória. A proximidade de sua fala com a do filósofo francês tem raízes que vão além de seu discurso poético. Mas como este texto deve apenas deixar o gosto, paro por aqui e deixo para quem fica mais dois fragmentos desta poetisa, a quem devo boas horas de paixão e de delírio.

I.
“(...)
há algo que permanece nas palavras
por detrás das palavras
como um gesto seco esquivo que se contém
antes mesmo de chegar nos lábios
antes mesmo dos limites
dos lábios há um gesto que se contém
que se esconde por detrás das palavras
conhecidas frases prontas
(…)
há um silêncio que espera sem pressa por detrás
das palavras como um gesto que permanece
há algo que permanece sem palavras por detrás
como se fosse um gesto antes de amanhecer”

II.
“seu corpo estava torcido ao revés
e havia uma dor
uma chuva interminável
o dia todo passado ao relento e
ele então andaria mais algumas quadras
para se abrigar algumas quadras a mais
tendo aquela mulher na cabeça
eu não posso te esquecer eu preciso
te esquecer como quem esquece um guarda-chuva
no táxi como quem esquece
a letra de uma música que ouvia todos os dias
eu não posso te esquecer enquanto o dia não abre
andar mais umas quadras um toldo para se abrigar
isto me faz lembrar de algumas tardes
de cabelo encharcado pés encharcados
sem poder voltar para casa
esperar a chuva passar o sapato secar
isto me faz lembrar me faz esquecer
algumas tardes vazias procurando modos de
ocupar o tempo modos de escorrer o tempo
até o próximo dia a próxima luz
fazer esquecer pode passar por isto
você abre a cortina e de início não encontra nada
você coloca as mãos para fora e as mãos
buscam rapidamente o casaco
ela se lembrava de esperar mais um pouco
ocupar as tardes vazias
isto soava uma coisa de juventude
tardes vazias procurar o que fazer
aguardar a chuva passar os sapatos secarem
quem estaria vivendo isto hoje ele ela
o corpo ao revés as mãos frias sob o casaco
o dorso se desviando levemente
tardes vazias a chuva interminável
se abrigue neste toldo posso
te fazer dormir
até o próximo dia a próxima luz
posso te fazer dormir”

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