domingo, 21 de junho de 2015

Lua de Mel

Cambono
Clauder Arcanjo
 

Para François Silvestre

Admito, paciente leitor, que passei muito rápido pela grande festa do casório de Ivan P. Abuelo e de Dona Therezinha Valladares. O meu problema, suspeito, é que esta novela já se me apresenta maçuda e, às vezes, quero cortar caminho onde não posso cortar.
Redimo, então, a minha falta, dando mostras — apesar de saber que a pena falha para tanto despautério — de alguns detalhes da festança. Vejamos, pois.
Os comensais foram aparecendo como formigas em cima de mel de rapadura, ou seja, aos magotes. Da Bahia, por exemplo, chegaram uma tribo de afoxés e outra de filhos de Gandhy. O axé e o batuque anunciaram tão apoteótica chegança. O ônibus parou e desceu para mais de uma centena: primos, primas, vizinhos, amigos próximos e distantes, sem falar nos soteropolitanos incrédulos, novos São Tomé, com as núpcias da sogra do Formigão.
Do lado do noivo, nem é bom falar. Colegas de trabalho vieram conferir o milagre, e conhecer a santa. Marcelo Batista, rompendo serras, sertões e alagados, estacionou sua camioneta turbinada bem na frente da casa do genro de Ivan. Numa van, as presenças de Andréia Nazza, do alto de seu imperial um metro e cinquenta de altura, ladeada pelos seus asseclas: Raimundo Segurino, Cabus Kabull e o roqueiro sertanejo Presley de Paulla.
Seu Bacana, inquieto e curioso, inquiria, a todos, sobre o “sangue” da lua de mel. O inspetor Busch Boca Suja, sempre zeloso com a boa técnica, a propor uma avaliação, com ensaios não destrutivos, após a primeira noite do casal. Dona Therezinha ria à socapa, do alto das suas bem vividas sessenta e poucas primaveras. Vitor Hugo aprumava os seus óculos náuticos, limpava a vista, e abençoava, candidamente, os recém-casados. Otto Milagre, um gaúcho capixaba, surgiu sobraçado com a sua cuia de chimarrão, a exigir um churrasco dos pampas. O que engulhava o estômago de Rogério Macrobius Patos de Minas.
Pouco depois, sem serem chamados, mas se considerando de antemão convidados, adentraram novos colegas de Ivan, colegas estes os quais o noivo nem sequer conhecia. Se achegavam, tomavam assento e exigiam comida e bebida, à farta, como se oriundos do Saara. Numa fome canina e numa sede de camelo.
Como bebida, serviram-se de pinga, cerveja e um vinho tinto de qualidade extremamente duvidosa. O encarregado dos bebes recebera expressa ordem de economizar. E, para isto, cumprira, à risca, o projetado: cachaça desdobrada, cerveja quente e vinho artesanal. Segundo as más línguas, o deus Baco de Licânia foi o bodegueiro Edir do Piragibe que montou, no fundo do seu comércio, à porta fechada, um improvisado alambique, uma cervejaria mambembe e um fermentador de zurrapa.
Quanto aos pratos servidos, não faltaram: buchada, sarapatel, panelada, miúdo de frango, paçoca, mão de vaca, galinha à cabidela e muita, mas muita, carne no espeto. O Gordinho assumiu o papel de chefe de cozinha. Nada passava para os convidados, sem ser submetido ao seu apetitoso paladar. Melhor, havia uma exceção: o limão. O resto submetia-se à sua aprovação.
No meio da festa, com o bucho nas alturas, e já melado que só espinhaço de pão doce, Gordinho vociferava:
— Vivam os noivos, e viva o bucho! — arrematando tudo com um sonoro e retumbante arroto.
Pouco depois, foram se achegando a população das cidades adjacentes; e outros, de urbes nem tão adjacentes assim.
Dom Marcelo, um poeta bissexto da distante Salinésia, no chão potiguar, pediu vênia para recitar alguns versos:
— Permitam-me saudar tão luzidia noite com um poema, lavra do lusitano mestre Fernando Pessoa, investido sob o manto do seu heterônimo Alberto Caeiro. Trata-se do poema “Eu nunca guardei rebanhos”.
Ele limpou a garganta, ajustou o cós da calça, abriu os braços, teatralmente, e sapecou, com sua voz de barítono:

Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Nisto, Dom Marcelo caiu em lágrimas. Sem poder mais recitar, ele pediu desculpas e retirou-se.
— Não entendi porra nenhuma, mas que falou bonito, falou! — comentou, em fumos de embriaguez, o sacristão.
— Eu também vou recitar um poema meu! — Padre Araquento, insuflado pela força do vinho do Edir, fez forças para se levantar e ocupar o centro do palco improvisado.
Foi, mais do que depressa, contido pelo sacristão:
— Senta aí, homem de Deus! Todo poema de padre, por mais santificado que seja, tem parte com o cão.
E mais um conviva caiu no choro. Desta feita, o vigário. Como lágrimas de padre embriagado contagiam mais de uma legião, o chororô correu franco, copioso e solto. Uns, emocionados e cativos da pinga; outros, enternecidos e escravos da cerveja quente; a maioria, comovidos e benditos pelo fruto da vindima do Edir.
Os nubentes, calados e de mãos dadas, não reparavam mais em nada, pois já se consumiam pela lua de mel.
Dona Therezinha Ferreira Valladares de Jesus a cutucar o noivo, a despertar a sua sonolenta libido:
— Vamos fugir, meu Ivan? Meu ter-rí-vel!... — soprava-lhe nos ouvidos, ao tempo em que lhe mordiscava o lobo das orelhas.
Ivan Perobino Abuelo, assustado com tanto assanhamento da velha dama, ganhava tempo, fingindo compromisso com os presentes:
— Há convivas que vieram de muito longe, minha dama. Fica muito deselegante nos ausentarmos.
— E eu lá quero saber de elegância, seu besta! O que eu quero só você pode me dar, meu Ivan, o terrível! — devolvia, com ares de loba no cio, a assanhada Therezinha Valladares.
Lá fora, a noite vestia-se com o brilho da lua. Uma lua cheia, de despertar os desejos mais inconfessos.
Foram, mais uma vez, ajudados por nosso herói. Adamastor Serbiatus Calvino, o Cambono, chamou-os ao canto e, mais do que ligeiro, deu a chave de uma motocicleta ao Ivan, soprando-lhe no ouvido esquerdo:
— É mais do que chegada a hora da fuga dos noivos.
Ivan subiu na moto, Therezinha se escanchou atrás, e... nada do motor dar partida.
Os nervos faltavam com o recém-casado, suas pernas tremiam feito vara verde.
Dona Therezinha não contou pipoca, assumiu o comando do guidão e saiu cantando pneu, rumo à lua de mel. Ivan, com a cara de quem ia para o cadafalso, na traseira da potente máquina.
O forró comia tão solto que ninguém deu por falta de nada.
Quanto à lua de mel, eu respeitarei os bons modos do noivo, guardando sepulcral e inexpugnável silêncio.
E nem me venha com os seus protestos, libidinoso leitor!
 

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