Cambono
Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Para
François Silvestre
Admito, paciente leitor, que
passei muito rápido pela grande festa do casório de Ivan P. Abuelo e de Dona
Therezinha Valladares. O meu problema, suspeito, é que esta novela já se me
apresenta maçuda e, às vezes, quero cortar caminho onde não posso cortar.
Redimo, então, a minha falta,
dando mostras — apesar de saber que a pena falha para tanto despautério — de
alguns detalhes da festança. Vejamos, pois.
Os comensais foram aparecendo
como formigas em cima de mel de rapadura, ou seja, aos magotes. Da Bahia, por
exemplo, chegaram uma tribo de afoxés e outra de filhos de Gandhy. O axé e o
batuque anunciaram tão apoteótica chegança. O ônibus parou e desceu para mais
de uma centena: primos, primas, vizinhos, amigos próximos e distantes, sem
falar nos soteropolitanos incrédulos, novos São Tomé, com as núpcias da sogra
do Formigão.
Do lado do noivo, nem é bom
falar. Colegas de trabalho vieram conferir o milagre, e conhecer a santa.
Marcelo Batista, rompendo serras, sertões e alagados, estacionou sua camioneta
turbinada bem na frente da casa do genro de Ivan. Numa van, as presenças de
Andréia Nazza, do alto de seu imperial um metro e cinquenta de altura, ladeada
pelos seus asseclas: Raimundo Segurino, Cabus Kabull e o roqueiro sertanejo
Presley de Paulla.
Seu Bacana, inquieto e curioso,
inquiria, a todos, sobre o “sangue” da lua de mel. O inspetor Busch Boca Suja,
sempre zeloso com a boa técnica, a propor uma avaliação, com ensaios não
destrutivos, após a primeira noite do casal. Dona Therezinha ria à socapa, do
alto das suas bem vividas sessenta e poucas primaveras. Vitor Hugo aprumava os
seus óculos náuticos, limpava a vista, e abençoava, candidamente, os
recém-casados. Otto Milagre, um gaúcho capixaba, surgiu sobraçado com a sua
cuia de chimarrão, a exigir um churrasco dos pampas. O que engulhava o estômago
de Rogério Macrobius Patos de Minas.
Pouco depois, sem serem
chamados, mas se considerando de antemão convidados, adentraram novos colegas de
Ivan, colegas estes os quais o noivo nem sequer conhecia. Se achegavam, tomavam
assento e exigiam comida e bebida, à farta, como se oriundos do Saara. Numa
fome canina e numa sede de camelo.
Como bebida, serviram-se de
pinga, cerveja e um vinho tinto de qualidade extremamente duvidosa. O
encarregado dos bebes recebera expressa ordem de economizar. E, para isto,
cumprira, à risca, o projetado: cachaça desdobrada, cerveja quente e vinho
artesanal. Segundo as más línguas, o deus Baco de Licânia foi o bodegueiro Edir
do Piragibe que montou, no fundo do seu comércio, à porta fechada, um
improvisado alambique, uma cervejaria mambembe e um fermentador de zurrapa.
Quanto aos pratos servidos, não
faltaram: buchada, sarapatel, panelada, miúdo de frango, paçoca, mão de vaca,
galinha à cabidela e muita, mas muita, carne no espeto. O Gordinho assumiu o
papel de chefe de cozinha. Nada passava para os convidados, sem ser submetido
ao seu apetitoso paladar. Melhor, havia uma exceção: o limão. O resto
submetia-se à sua aprovação.
No meio da festa, com o bucho
nas alturas, e já melado que só espinhaço de pão doce, Gordinho vociferava:
— Vivam os noivos, e viva o
bucho! — arrematando tudo com um sonoro e retumbante arroto.
Pouco depois, foram se
achegando a população das cidades adjacentes; e outros, de urbes nem tão
adjacentes assim.
Dom Marcelo, um poeta bissexto
da distante Salinésia, no chão potiguar, pediu vênia para recitar alguns
versos:
— Permitam-me saudar tão
luzidia noite com um poema, lavra do lusitano mestre Fernando Pessoa, investido
sob o manto do seu heterônimo Alberto Caeiro. Trata-se do poema “Eu nunca
guardei rebanhos”.
Ele limpou a garganta, ajustou
o cós da calça, abriu os braços, teatralmente, e sapecou, com sua voz de
barítono:
Eu
nunca guardei rebanhos,
Minha
alma é como um pastor,
Conhece
o vento e o sol
E
anda pela mão das Estações
A
seguir e a olhar.
Toda
a paz da Natureza sem gente
Vem
sentar-se a meu lado.
Mas
eu fico triste como um pôr de sol
Para
a nossa imaginação,
Quando
esfria no fundo da planície
E
se sente a noite entrada
Como
uma borboleta pela janela.
Mas
a minha tristeza é sossego
Porque
é natural e justa
E
é o que deve estar na alma
Quando
já pensa que existe
E
as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Nisto, Dom Marcelo caiu em
lágrimas. Sem poder mais recitar, ele pediu desculpas e retirou-se.
— Não entendi porra nenhuma,
mas que falou bonito, falou! — comentou, em fumos de embriaguez, o sacristão.
— Eu também vou recitar um
poema meu! — Padre Araquento, insuflado pela força do vinho do Edir, fez forças
para se levantar e ocupar o centro do palco improvisado.
Foi, mais do que depressa,
contido pelo sacristão:
— Senta aí, homem de Deus! Todo
poema de padre, por mais santificado que seja, tem parte com o cão.
E mais um conviva caiu no choro.
Desta feita, o vigário. Como lágrimas de padre embriagado contagiam mais de uma
legião, o chororô correu franco, copioso e solto. Uns, emocionados e cativos da
pinga; outros, enternecidos e escravos da cerveja quente; a maioria, comovidos
e benditos pelo fruto da vindima do Edir.
Os nubentes, calados e de mãos
dadas, não reparavam mais em nada, pois já se consumiam pela lua de mel.
Dona Therezinha Ferreira
Valladares de Jesus a cutucar o noivo, a despertar a sua sonolenta libido:
— Vamos fugir, meu Ivan? Meu
ter-rí-vel!... — soprava-lhe nos ouvidos, ao tempo em que lhe mordiscava o lobo
das orelhas.
Ivan Perobino Abuelo, assustado
com tanto assanhamento da velha dama, ganhava tempo, fingindo compromisso com
os presentes:
— Há convivas que vieram de
muito longe, minha dama. Fica muito deselegante nos ausentarmos.
— E eu lá quero saber de
elegância, seu besta! O que eu quero só você pode me dar, meu Ivan, o terrível!
— devolvia, com ares de loba no cio, a assanhada Therezinha Valladares.
Lá fora, a noite vestia-se com
o brilho da lua. Uma lua cheia, de despertar os desejos mais inconfessos.
Foram, mais uma vez, ajudados
por nosso herói. Adamastor Serbiatus Calvino, o Cambono, chamou-os ao canto e,
mais do que ligeiro, deu a chave de uma motocicleta ao Ivan, soprando-lhe no
ouvido esquerdo:
— É mais do que chegada a hora
da fuga dos noivos.
Ivan subiu na moto, Therezinha
se escanchou atrás, e... nada do motor dar partida.
Os nervos faltavam com o
recém-casado, suas pernas tremiam feito vara verde.
Dona Therezinha não contou
pipoca, assumiu o comando do guidão e saiu cantando pneu, rumo à lua de mel.
Ivan, com a cara de quem ia para o cadafalso, na traseira da potente máquina.
O forró comia tão solto que
ninguém deu por falta de nada.
Quanto à lua de mel, eu respeitarei
os bons modos do noivo, guardando sepulcral e inexpugnável silêncio.
E nem me venha com os seus
protestos, libidinoso leitor!
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