terça-feira, 21 de julho de 2015

O açoite da melancolia

Cambono
Clauder Arcanjo

Para Ítalo Gurgel

Recebi, após a publicação do capítulo anterior, duas visitas. A primeira veio-me em forma de carta. Mais especificamente uma missiva da cidade de Nantes, na França.
Transcrevo-a, na íntegra. Penso que não firo o primado da discrição; o que me move (além do ganhar tempo, enquanto me recobro da maleita da falta de assunto) é tão só o espírito de dividir com você, leitor, a percepção de uma leitora atenta e valorosa.
Leiamos, juntos:

Caro Clauder,
Muito bom texto!
Concordo com você em não desvendar os detalhes da lua de mel dos nubentes, em não alimentar o voyeurismo malsão de certos leitores.
Milito por uma literatura que se enderece mais ao intelecto e menos aos sentidos. Que excite mais os neurônios e menos a libido. E não há nenhum falso moralismo nessa minha observação. Há poemas e prosa sensuais e até eróticos, mas nunca escritos com fins de saciar apetites do leitor dado à prática do exibicionismo.
Um abraço desta sua inconstante, porém sincera leitora.
Sueleide

Confesso que, até momentos antes, eu estava sendo induzido a descrever a primeira noite dos nubentes. Alguns, mais atilados e promíscuos, pediam-me, encarecidamente, cenas bem quentes e picantes, descritas ao calor da pulsão mais carnal e libertina. Outros, amasiados com o humor e a ironia, conclamavam-me para criar um cenário de troça e desbunde.
Cheguei a juntar algumas peças, rabiscar algumas sequências, contudo Sueleide ajudou-me a recolher as armas para o fundo do baú do bom senso.
A segunda visita, leitor, me apareceu exatos três dias depois. Uma senhora magérrima, em trajes escuros, de pouca conversa e de olhar percuciente. Entrou sem bater à porta, sentou-se ao meu lado, mexeu nos meus livros, desorganizou os meus compromissos rabiscados numa agenda improvisada, agenda esta que sempre mantenho ao canto da escrivaninha. Ela nada disse nem nada perguntou. Apenas, ficou.
De início, não lhe dei atenção. Ela não passava recado: parada estava, parada ficou. Resolvi trocar de roupa e sair de casa. Chegando ao Centro, corri as ruas; entrei em alguns estabelecimentos, comprei supérfluos e, no café do Rafael Arcanjo, joguei conversa fora, forjei gargalhadas e marquei compromissos com alguns conhecidos. Horas depois, retornei para o meu lar.
Lá, estava a tal indiscreta: no mesmo canto, com o mesmo olhar, metida no véu longo da paciência e sob o xale gris do silêncio.
Como já nos encontrávamos próximos do meio-dia, resolvi tomar um banho rápido e almoçar algo bem leve. Com pouco, meti-me no meu quarto. À mão, levava um livro de linguística. Não me pergunte o porquê. Escrevinhador, algumas vezes, abraça-se com temas incomuns. No meu caso, andava metendo as fuças de curioso no campo da linguística aplicada.
Contudo, a leitura não avançava. Na frase seguinte, parava, voltava, cercava, relia, parava, remoía, como se mastigasse as letras, em busca do elo perdido do verbo anterior. Entre os parágrafos lidos e relidos, e não entendidos, se intrometia a imagem cinzenta da visitante que ficara na minha sala de estar.
Sem conseguir ler, e sem conseguir descansar na minha costumeira siesta, levantei-me. Fitei-me no espelho, lavei o rosto, penteei os ralos cabelos e resolvi encarar, por definitivo, a incômoda visitante.
Antes de qualquer colocação minha, ela pôs a mão fria no meu ombro, chamando-me ao canto. Neste exato instante, a minha mente foi invadida pela paz dos desgraçados. Sim, pois como poderia descrever uma serenidade que cheira a dor, a esgar e a sofrimento?
O meu peito viu-se tomado por funda opressão, os meus braços quedaram-se ao longo do corpo, o meu apetite sumiu pelo ralo, as forças me faltaram como se uma vontade de entregar-me ao sabor do acaso.
Tentei fugir, contudo a senhora visitante não era páreo fácil. Em segundos, pôs os seus olhos negros dentro dos meus, e uma lágrima saltou para a minha face pálida.
Catei energia na bateria da fé, orando para a Virgem e para todos os santos... nada.
Tudo me levava para os braços da desgraçada. Chamo-a assim, leitor, pois já sentia na minha boca o fel da tristeza.
Aflito, recorri à tevê, dado que a leitura não me ajudara. Em vão. Todos os desenhos animados se me revelaram de uma sensaboria incomum. Os jornais, imersos em sangue e acidentes, afundavam-me ainda mais no lodo da angústia.
Minha esposa percebeu o meu quadro, aproximou-se, soprou carícias nos meus ouvidos... em vão.
Como eu ainda não dera continuidade ao novo capítulo de Cambono, eis que surge a legião das minhas personagens.
Professor Galvino Arcanjo foi o primeiro a se achegar; sempre cônscio de todos os males do corpo e da alma, receitou-me um laxante e uma vitamina:
— Corpo são, mente sã.
Os tais remédios do farmacêutico Galvino me levaram à latrina, onde lá quase deixei os meus bofes, todavia o quadro de macambuzia se manteve incólume.
Padre Araquento e seu fiel sacristão entraram de casa adentro, e, entre uma mastigada e outra no bolo de milho de minha Biscuí, elevaram as mãos ao Céu, arvoraram-se interlocutores do Deus do Universo e me conclamaram para uma rápida confissão, seguida pela comunhão com o corpo e o sangue do Senhor.
Católico, fui à missa, rezei contrito, confessei-me, comunguei... nada mudou.
Um grito festivo chamou a minha atenção. Era Ivan, o marido de Dona Therezinha.
— Me esconda da minha mulher, Clauder Arcanjo! Se não, ela vai acabar acabando comigo. Estou prejudicado!
Notei-lhe, nos olhos fundos, o corpo extenuado. No rosto, a boca trêmula.
“Será que Dona Therezinha estaria maltratando o seu esposo?!” —indaguei-me.
— Venha cá, meu Ivan, meu queridinho ter-rí-vel! — Dona Therezinha Valladares avançava, com as mãos recheadas de comprimido Viagra.
— Venha logo tomar a sua vitamininha, benzinho! Você precisa deste azulzinho, anda com o negócio meio encruado! — chamava-o, correndo pelos corredores da minha casa.
Na curva da estrada, onde o horizonte surgia na retina dos meus olhos, um pelotão de outras personagens já se avistava: Lopau, o manso, Zé Funéreo, Dona Parmênides, Paulino Marlley, Zé Aguiar, João Américo, Manuel Alves, o bodegueiro Edir, Zequinha Coletor, Dona Adamir Carneiro, Maria Abógada... Todos sob o comando singular do Adamastor Serbiatus Calvino, o Cambono. Este sempre a incitá-los:
— Ou ela para de açoitar o nosso escrevinhador ou a nossa novela-folhetim não seguirá adiante. Vamos, minha gente, força nas canelas!
Com o rumor dos invasores, a senhora visitante, não sem antes aprumar o coque, saiu. Antes de se retirar, arrematou:
— Ou tornam a vida deste homem coberta pelo glacê da alegria, amigos, ou eu estarei de volta.
Vade retro, Senhora Melancolia!

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