Cambono
Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Para
Ítalo Gurgel
Recebi, após a publicação do capítulo anterior,
duas visitas. A primeira veio-me em forma de carta. Mais especificamente uma
missiva da cidade de Nantes, na França.
Transcrevo-a, na íntegra. Penso que não firo o
primado da discrição; o que me move (além do ganhar tempo, enquanto me recobro
da maleita da falta de assunto) é tão só o espírito de dividir com você,
leitor, a percepção de uma leitora atenta e valorosa.
Leiamos, juntos:
Caro
Clauder,
Muito
bom texto!
Concordo com você em não desvendar os
detalhes da lua de mel dos nubentes, em não alimentar o voyeurismo malsão de
certos leitores.
Milito por uma literatura que se
enderece mais ao intelecto e menos aos sentidos. Que excite mais os neurônios e
menos a libido. E não há nenhum falso moralismo nessa minha observação. Há
poemas e prosa sensuais e até eróticos, mas nunca escritos com fins de saciar
apetites do leitor dado à prática do exibicionismo.
Um
abraço desta sua inconstante, porém sincera leitora.
Sueleide
Confesso que, até momentos antes, eu estava sendo
induzido a descrever a primeira noite dos nubentes. Alguns, mais atilados e
promíscuos, pediam-me, encarecidamente, cenas bem quentes e picantes, descritas
ao calor da pulsão mais carnal e libertina. Outros, amasiados com o humor e a
ironia, conclamavam-me para criar um cenário de troça e desbunde.
Cheguei a juntar algumas peças, rabiscar algumas
sequências, contudo Sueleide ajudou-me a recolher as armas para o fundo do baú
do bom senso.
A segunda visita, leitor, me apareceu exatos três
dias depois. Uma senhora magérrima, em trajes escuros, de pouca conversa e de
olhar percuciente. Entrou sem bater à porta, sentou-se ao meu lado, mexeu nos
meus livros, desorganizou os meus compromissos rabiscados numa agenda improvisada,
agenda esta que sempre mantenho ao canto da escrivaninha. Ela nada disse nem
nada perguntou. Apenas, ficou.
De início, não lhe dei atenção. Ela não passava
recado: parada estava, parada ficou. Resolvi trocar de roupa e sair de casa.
Chegando ao Centro, corri as ruas; entrei em alguns estabelecimentos, comprei
supérfluos e, no café do Rafael Arcanjo, joguei conversa fora, forjei
gargalhadas e marquei compromissos com alguns conhecidos. Horas depois,
retornei para o meu lar.
Lá, estava a tal indiscreta: no mesmo canto, com o
mesmo olhar, metida no véu longo da paciência e sob o xale gris do silêncio.
Como já nos encontrávamos próximos do meio-dia,
resolvi tomar um banho rápido e almoçar algo bem leve. Com pouco, meti-me no
meu quarto. À mão, levava um livro de linguística. Não me pergunte o porquê.
Escrevinhador, algumas vezes, abraça-se com temas incomuns. No meu caso, andava
metendo as fuças de curioso no campo da linguística aplicada.
Contudo, a leitura não avançava. Na frase seguinte,
parava, voltava, cercava, relia, parava, remoía, como se mastigasse as letras,
em busca do elo perdido do verbo anterior. Entre os parágrafos lidos e relidos,
e não entendidos, se intrometia a imagem cinzenta da visitante que ficara na
minha sala de estar.
Sem conseguir ler, e sem conseguir descansar na
minha costumeira siesta, levantei-me. Fitei-me no espelho, lavei o rosto,
penteei os ralos cabelos e resolvi encarar, por definitivo, a incômoda
visitante.
Antes de qualquer colocação minha, ela pôs a mão
fria no meu ombro, chamando-me ao canto. Neste exato instante, a minha mente
foi invadida pela paz dos desgraçados. Sim, pois como poderia descrever uma
serenidade que cheira a dor, a esgar e a sofrimento?
O meu peito viu-se tomado por funda opressão, os
meus braços quedaram-se ao longo do corpo, o meu apetite sumiu pelo ralo, as
forças me faltaram como se uma vontade de entregar-me ao sabor do acaso.
Tentei fugir, contudo a senhora visitante não era
páreo fácil. Em segundos, pôs os seus olhos negros dentro dos meus, e uma
lágrima saltou para a minha face pálida.
Catei energia na bateria da fé, orando para a
Virgem e para todos os santos... nada.
Tudo me levava para os braços da desgraçada.
Chamo-a assim, leitor, pois já sentia na minha boca o fel da tristeza.
Aflito, recorri à tevê, dado que a leitura não me
ajudara. Em vão. Todos os desenhos animados se me revelaram de uma sensaboria
incomum. Os jornais, imersos em sangue e acidentes, afundavam-me ainda mais no
lodo da angústia.
Minha esposa percebeu o meu quadro, aproximou-se,
soprou carícias nos meus ouvidos... em vão.
Como eu ainda não dera continuidade ao novo
capítulo de Cambono, eis que surge a legião das minhas personagens.
Professor Galvino Arcanjo foi o primeiro a se
achegar; sempre cônscio de todos os males do corpo e da alma, receitou-me um
laxante e uma vitamina:
— Corpo são, mente sã.
Os tais remédios do farmacêutico Galvino me levaram
à latrina, onde lá quase deixei os meus bofes, todavia o quadro de macambuzia
se manteve incólume.
Padre Araquento e seu fiel sacristão entraram de
casa adentro, e, entre uma mastigada e outra no bolo de milho de minha Biscuí,
elevaram as mãos ao Céu, arvoraram-se interlocutores do Deus do Universo e me
conclamaram para uma rápida confissão, seguida pela comunhão com o corpo e o
sangue do Senhor.
Católico, fui à missa, rezei contrito,
confessei-me, comunguei... nada mudou.
Um grito festivo chamou a minha atenção. Era Ivan,
o marido de Dona Therezinha.
— Me esconda da minha mulher, Clauder Arcanjo! Se
não, ela vai acabar acabando comigo. Estou prejudicado!
Notei-lhe, nos olhos fundos, o corpo extenuado. No
rosto, a boca trêmula.
“Será que Dona Therezinha estaria maltratando o seu
esposo?!” —indaguei-me.
— Venha cá, meu Ivan, meu queridinho ter-rí-vel! —
Dona Therezinha Valladares avançava, com as mãos recheadas de comprimido
Viagra.
— Venha logo tomar a sua vitamininha, benzinho!
Você precisa deste azulzinho, anda com o negócio meio encruado! — chamava-o,
correndo pelos corredores da minha casa.
Na curva da estrada, onde o horizonte surgia na
retina dos meus olhos, um pelotão de outras personagens já se avistava: Lopau,
o manso, Zé Funéreo, Dona Parmênides, Paulino Marlley, Zé Aguiar, João Américo,
Manuel Alves, o bodegueiro Edir, Zequinha Coletor, Dona Adamir Carneiro, Maria
Abógada... Todos sob o comando singular do Adamastor Serbiatus Calvino, o Cambono.
Este sempre a incitá-los:
— Ou ela para de açoitar o nosso escrevinhador ou a
nossa novela-folhetim não seguirá adiante. Vamos, minha gente, força nas
canelas!
Com o rumor dos invasores, a senhora visitante, não
sem antes aprumar o coque, saiu. Antes de se retirar, arrematou:
— Ou tornam a vida deste homem coberta pelo glacê
da alegria, amigos, ou eu estarei de volta.
Vade retro, Senhora Melancolia!
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