sexta-feira, 11 de setembro de 2015

HERÓI. MORTO. NÓS.

Coluna Textos Curingas


A crônica abaixo é uma das mais importantes da literatura brasileira. Forte e didática, contextualizada e atemporal, linguagem direta e mensagem profunda. Lourenço Diaféria, jornalista, contista e cronista, publicou-a durante a Ditadura Militar e sofreu com isso. Os militares não gostaram do que leram e resolveram que era melhor prendê-lo em seu ambiente de trabalho. Deve ser algo como "para vocês aprenderem a lição". A Folha, solidária ao jornalista preso, deixou seu espaço em branco, afinal, aquele cantinho do jornal tinha dono e o dono, este era corajoso.


[Crônica publicada em 1º de setembro de 1977]
Neste texto foi mantida a grafia original da época.


Lourenço Diaféria 

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos. 

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. 

Que nome devo dar a esse homem? 

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. 

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói - como o santo - é aquele que vive sua vida até as últimas consequências. 

O herói redime a humanidade à deriva. 

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major. 

Está morto. 

Um belíssimo sargento morto. 

E todavia. 

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. 

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer - oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar. 

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. 

No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos. 

Esse sargento não é do grupo do cambalacho. 

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais. 

É apenas um homem que - como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem - não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa. 

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue. 

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais. 

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. 

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos - mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar. 

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. 

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais. 

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