por:
Hermes de Sousa Veras
Ligeiramente sombrio. No mais, consideravelmente feliz e tropical.
Coluna: Etnoliteratura
Mário estava de pijama pensando nas coisas vistas em seu último passeio à pé. Caminhar, para Mário, era
um desbravar, sentia-se um típico flâneur. Apesar do perigo
constante, instalado em sua cabeça, de ser assaltado; movia-se lentamente,
experimentando as texturas do asfalto, das paredes, os declives entre um trecho
e outro da calçada.
Gostava de ver as
gentes apressadas – as gentes não gente como ele, sempre precisadas de tempo,
faltosas de horas, correndo para seus serviços, ou voltando para casa com
intuito de dormir cedo, e assim, acordar na madrugada e prosseguir o ciclo de labuta
e exploração. Admirava-se pela falta de apetite daquelas pessoas. Elas não
tinham senso estético nenhum? Não as apetecia admirar a cidade?
De pijama sem
preocupação alguma a não ser questionar os hábitos alheios, recordava-se das
placas de anúncios estranhos em metal, cartazes, papel vagabundo ou escritos na
tessitura dos muros. Parecia um mistério. Quem as fazia? Para quem? E o pior,
quem as consumia? Pessoas oferecendo serviços de técnicos de geladeira, de conserta-se panelas, ajeita-se ventiladores. Um em especial
chamou sua atenção de homem fino: amola-se
alicates e terçados. Havia anotado o número até, e há mais ou menos uma
hora tentara telefonar. Nenhum sinal. Seria tudo aquilo piada de gente pobre
para gente pobre? Ou uma tentativa da gente apressada de comunicar-se com a
gente de gosto refinado?
Concluiu que o serviçal
dos alicates e terçados deveria estar com a maior parte do povo, comemorando no
Ver-o-Peso os 400 anos da cidade de Belém, embora ainda estivesse nas vésperas
desse dia. E se alguém necessitasse desse serviço, possuindo um alicate
defeituoso juntamente com a impossibilidade de comprar outro? Essas assertivas
eram impossíveis no universo real de Mário de pijama, contudo, com bastante
esforço, brincava com situações assim, imaginadas.
Agiu, então, para
nenhum cliente ficar sem esse serviço. Se Chico dos Terçados não trabalhava
naquele dia, Mário de pijama o substituiria. Lembrou-se do filho metido a
artista, atualmente ausente, em Paris ou Berlim, sabe-se lá, e de lá furtou um
baldinho de tinta e pincéis. Apenas de meias, para assim sentir melhor o chão,
saiu com desejos de cobrir a placa do amolador. Aliás, alterou apenas o telefone
celular, fazendo um desenho, ao lado do número, indicando haver naquele acesso
às redes sociais digitais.
Mário estava novamente
de pijama esperando ansioso. Os fogos de quando em vez papocavam ao redor.
Cansado, caminhara duas vezes em um dia apenas; na vida comum de Mário uma
caminhada acontecia a cada período de lua cheia... Entediado, pegava o celular
a cada instante, conferindo se as notificações eram relacionadas ao serviço
novo oferecido na cidade. Não era. Não durante um tempo, mas antes de entardecer
surgiu um pedido para amolar um terçado. Forneceu o endereço e o preço em
êxtase, então era verdade que pessoas necessitavam desse serviço? Não seria
mais fácil comprar um novo?
Uma demora para a
resposta do cliente... Ela não aconteceu pela internet, e sim por ligação.
– É piada né? Sua
oficina ser nesse endereço? É um apartamento de bacana, precisa de uma bolada
para morar aí!
Mário ainda de pijama
convenceu que não. Fazia o serviço mais por caridade, o tanto que cobrava era
irrisório. Revelou-se um homem de classe alta ressentido por não saber fazer
nada, até que certo dia, decidiu aprender alguma atividade manual útil para a
sociedade.
Jaime precisava amolar
seu terçado pois daria um trato na frente da casa de um alguém. Jaime não
conseguia serviço algum, e vendia sua força corporal da forma como podia. Em
pleno processo de comemoração de 400 anos da cidade, um alguém queria a fachada
de sua casa apresentável, contratando assim a força laboral de Jaime, o qual
estava a perambular pelas ruas pedindo qualquer oportunidade de ganhar alguns
trocados. Seu terçado, já bastante enferrujado, não cortava mais um nada.
Dinheiro para outro não tinha, lembrou-se então de um anúncio. Pediu emprestado
o celular com internet do dono da barraquinha de lanches e assim encontrou-se,
desconfiado, com Mário.
Na verdade, chegou
apenas até a portaria. Estranhando de Jaime, o porteiro perguntou, antes mesmo
do rapaz se aproximar, o que ele queria por ali. Com a resposta, interfonou para
Mário, ainda de pijama, totalmente desconfiado.
– Pode deixar comigo na
portaria o terçado. Patrão Mário vem buscar em breve. Disse que hoje mesmo
devolve para o senhor. 17 horas.
Jaime pela primeira vez
foi senhor.
Mário logo foi buscar o
terçado. Percebeu não possuir nenhum amolador. – Zé, você tem? Tinha sim, mas
não funcionaria em um terçado. Mário quisera mesmo assim. Zé buscou em seu
barraco revestido de apartamento a nova ferramenta e completava, assim,a ânsia
de Mário. Ele, ainda de pijama, tentou amolar o terçado e esperou Jaime.
Dessa vez mandou subir.
Jaime, atarantado depois de enfrentar o elevador, foi ter com a
campainha. Lá estava, Mário de pijama, pronto para recepcionar seu cliente.
Mário quando o viu,
parecia ter comido borboletas, o estômago revirou-se. Essa pessoa no meu
apartamento? Essa pessoa na minha propriedade? Surpreso com sua própria
inteligência e aventura e coragem para entrar em contato com o submundo das
placas de serviços, varou a barriga de Jaime, fazendo jorrar sangue e outras
coisas indecifráveis no carpete. Ainda de pijama, deixou apenas o corpo cair,
trocou de roupa, pegou no bolso de Jaime a quantia exata que cobraria e saiu.
Não antes sem trancar a porta.
Caminhou pelas ruas da
cidade idosa. Ali, avistou uma bicicleta de lanches. Com o dinheirinho de Jaime
no bolso, foi conversar com o dono da cargueira. Pediu um completo, logo
descobrindo ser aquilo a combinação de um salgado com um refrigerante. Engolira
o salgado achando-o insuportável e ensaiou ir embora com a garrafa de bebida na
mão, rapidamente impedido pelo vendedor, que pegou o refrigerante de Mário,
despejando-o em um saco.
– O senhor não sabe não
é? Só furar assim com o canudo, ó. E pronto.
Com o saco de
refrigerante na mão voltou pra casa. Ficou de pijama o resto do dia, claro,
logo depois de explicar para Zé como Jaime nunca existira, sendo sempre ele um
fruto de imaginação e delírios. Afinal, Seu Mário amolando terçado? Parece que
não.
2 comentários:
Caramba!! Que massa!!
Hermes, meu chapa, que conto maduro, forte. Ficou muito bom!
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