terça-feira, 17 de maio de 2016

Crise

por:

Hermes de Sousa Veras
Ligeiramente sombrio. No mais, consideravelmente feliz e tropical.
Coluna: Etnoliteratura



P. antes de se deitar, arremessou a bolsa no criado mudo.
–Estou exausta. Só mesmo você, M. para aliviar meus momentos de crise.
– Sério, madame? Não deixe isso influenciar nosso tratamento. Tudo de ruim deve ficar lá fora.
M., enquanto falava, organizava os cristais terápicos.
– Isso é tão bom. Sabe, andei pensando. Agora sei porque as pessoas preferem os cachorrinhos, os animais, entende? Eles não são falsos. Não mentem, e valem mais do que muitas pessoas. Assim como essa pedra. Ela não quer nada em troca, apenas equilibrar minhas energias.
P. tinha um cristal roxo no abdômen.
Meus chacras devem estar um horror. Ou o meu carma, para sofrer tanto engano, né? Dessa vez foi a minha costureira.
Em outro ambiente, P. repetiu o gesto, jogando a bolsa para L. guardar. Sentou em uma cadeira estofada, enquanto tirava os sapatos.
– Hoje estou um trapo mesmo. Lembra daquela costureira? Sim, eu sempre pagava a mais para ela. Contratei até a filha para ser minha secretária do lar.
L. ouvia com atenção, aliás, fingia ter atenção. Técnica adquirida pela experiência.
– Não é que eu descobri que ela não precisava do dinheiro e da ajuda? Eu fui na casa dela, finalmente tive coragem, pois é numa baixada. Meu amor, ela já tem até TV por assinatura e internet banda larga. Esse pessoal é mesmo folgado. Se ela tem dinheiro para ter isso, por que não se muda? Aquele bairro terrível de longe e feio. E fingindo, cobrando as costuras uma miséria, só para eu ter pena e dar mais dinheiro. Eu agora estou vacinada contra esse tipo de gente!
L. estava em momento crucial e perigoso, com a lâmina em um canto de unha.
– Mas é esse tipo de gente que nosso governo criou. Uma mulher no poder só podia dar nisso, não é? Ai! Cuidado, menina!
L. perfurou um lugar misterioso, aquelas partes de nossos dedos que jorram muito sangue.
P. calou-se durante todo o processo, voltou para casa chupando dedo. No automóvel, o banco do lado esquerdo – tinha um carro britânico – recebia algodões chamuscados de sangue que ela não cansava de tirar do ferimento.
Depois de renovar o visual das unhas e equilibrar os chacras, parecia aliviada. Falou pra si:
– Vamos lá. Energias equilibradas, visual tratado, novas amizades, nada de se enganar com pessoas falsas. Tinha uma teoria: seu corpo não era apenas seu corpo. Estava conectado com toda a sociedade, os planetas, os cosmos. Agora que estamos em um governo novo, pensava ela, a vida seria outra.

É isso mesmo, nada de falar em crise!

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