quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A revolta dos leitores

Clauder Arcanjo
clauderarcanjo@gmail.com 


Para o leitor desconhecido


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Nem de todo refeito da revolta das personagens, deparo-me com outra insurreição. Desta feita, da minha meia dúzia de leitores.

Com as personagens, crias das nossas penas uterinas, a coisa tomou ares de revolta interna. Como dizia um grande amigo meu, é duro, mas é intestinal. Sem trocadilho, claro.

No caso dos insurrectos leitores, não sei como agir. O primeiro que me pediu a palavra, em tom de discurso parnasiano, exigiu-me o respeito à tradição folhetinesca. Na ponta dos pés, e de dedo em riste, vociferava seus febris argumentos. Alguns ainda permanecem sonoramente vivos nos meus ouvidos:

— Se voltarmos no tempo, meu caro escrevinhador, constataremos que a literatura se fez maior quando ergueu o seu oráculo com os tijolos da glória e da tradição. Não caia no discurso oco dos pseudo-modernistas. Estes, coitados, pensam que tudo vale, que tudo pode, que a gramática, a linguística, a sintaxe pode — e deve — ser enxovalhada na água pútrida do descaso. Que basta enchermos o papel de rabugices, que a glória os elegerá como romancistas. Isto não! Quem leu Cervantes não se satisfaz com o fabular desconexo. Estou cansado destes impostores! Você, em algumas passagens, deixou-me animado, untou seu enredo com o mel irônico de Machado, outras vezes, com fina ironia, enfileirou-se com os ícones da arte romanesca, fabulando com galhardia e desenvoltura singulares. No entanto, confesso, a minha alegria durou pouco, pois no capítulo seguinte entregou-se às invencionices, chamou o leitor para participar sem precisão, e não fugiu à regra atual: produzindo algo deveras chinfrim.

Era um leitor de qualidade, amante da forma e do texto. Nunca o imaginara como um dos meus leitores. Chamei-o para trocar com ele algumas confidências, contudo ele não me deu ouvidos:

— Não quero conversa com traidor da literatura canônica. Ou altere o seu texto, ou nunca mais lerei os seus escritos. Fui claro? — mal desabafou estas palavras, foi logo me dando as costas, sem tempo para nenhuma argumentação de minha parte.

— Mas, amigo, deixe eu explicar...

— Não cabe explicação. Deixe esse ranzinza parnasiano ir embora. Você não tem que agradar tal público; são poucos e chatos. Não enchem um fusca, se todos resolvessem se juntar para um protesto em frente a sua residência — era um jovem modernista. Melhor diria, pós-ultra-moderno, pois assim ele se definia.

— Mas...

— Preste atenção em mim, escute o que vou lhe dizer: o seu folhetim novelesco falha quando tenta agradar à tradição. Liberte-se, dê um toco para o cânone e caia na gandaia da frevança literária...

— Frevança literária?!... Nunca ouvi falar desta corrente literária! — interroguei-lhe, acabrunhado.

O cabra era jovem, todo vestido de preto, com uma grande parte do corpo revestida de tatuagens, além de um piercing na língua, e de dois brincos reluzentes em cada orelha. Sem citar que, pela aparência, o sujeito era inimigo de banho, de escova e de sabonete; digo isto pelo forte “cheiro” que exalava quando ele erguia os braços e abria a bocarra para vomitar seus acalorados argumentos.

Meio zonzo com a fedentina e com a dialética bizarra, fui salvo por uma senhorita. Ela se achegou, pediu, candidamente, licença e declarou:

— Não precisa desbancar a Santa Madre Igreja para ser lido, amigo escritor. Adoro suas crônicas, acompanho todos os seus escritos, vibrei com a sua decisão de encarar a feitura de um romance-folhetim, mas não precisava ser tão descortês com as pias Filhas de Maria. Formamos uma legião de senhoras e temos ajudado muita gente nesta nossa pequena província... Você conhece o nosso trabalho social? Ou está se deixando levar apenas pela boataria das ruas?

Havia em seus olhos uma pureza divinal, tive vergonha de mim, eu que assacara tanta coisa reles nas costas das Filhas de Maria.

Ao canto, encontrava-se um senhor. Cinquentão, quase de todo careca, com um bigodinho bem aparado e com modos de rapaz velho. Lentamente foi se aproximando de onde eu me encontrava. Com passos medidos, mas decididos:

— Com sua licença, senhor escritor. Permita-me! — sua voz tinha um acento forte e peculiar.

— Pois não. Quem é o senhor? — caí na esparrela de perguntar.

— Vejo que o novo romancista está mais perdido do que cego em forte tiroteio. Você não me reconhece? Não me reconhece? — aproximou-se ainda mais, quase colando o seu nariz no meu.

— Companheiro Acácio?!...

— Cuidemos de sair daqui, antes que você apanhe, meu caro! — foi falando e me arrastando para fora daquele ambiente.

Quando nos encontrávamos a meia quadra, ainda colhíamos os argumentos furiosos da meia dúzia de meus leitores, num azáfama só: “Cambono revelou-se uma tremenda farsa: nem é romance, nem é novela, nem é folhetim. Vou processar o desgraçado do escritor. Sim, processá-lo: por danos morais!”; “Cambono foi bem até o décimo capítulo, a partir daí caiu na esbórnia e no desleixo”: “Não concordo, a coisa piorou do meio para o fim. Ele devia voltar e alterar todo o início”; “Quem manda reverenciar um assistente de pai de santo!”; “Este negócio de anti-herói é uma furada!”.

Entramos num café e nos sentamos na mesa mais ao fundo. Companheiro Acácio trazia um riso de galhofa no canto dos beiços. Pediu dois cafezinhos e, quando o dono da mercearia se distanciou, disparou:

— Eu bem que o avisei: a vida de romancista não é fácil. Você não me deu ouvidos. Acostumado com as águas plácidas da crônica, nem cuidou de providenciar um barco mais robusto para enfrentar as procelas do mar aberto da ficção. Não, meteu a cara dentro da velha e revelha canoa, armado tão somente com o remo da pena de cronista. Para ir além do Bojador, tem que ir além da dor... Lembra-se dos versos de Fernando Pessoa?

Sorvi o meu café, ainda com as mãos trêmulas. A cabeça em polvorosa, sem saber o que fazer. Estava a dois passos do fim da minha novela-folhetim; e, na semana passada, vi-me diante da revolta das personagens e, agora, da minha meia dúzia de leitores.

Companheiro Acácio pede-me uma caneta, saca do bolso da camisa o seu conhecido bloco de papel, redige um bilhete, dobrando-o, cuidadosamente.

— Neste papel está minha última sugestão. Leia-o, antes de pôr termo a Cambono. No mais, amigo, a sorte está lançada. Bom trabalho! Que os deuses do Olimpo literário lhe guiem.

E saiu, deixando-me sozinho; melhor, com aquele bilhete no bolso da minha camisa.

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