Clauder Arcanjo
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Coluna: Portão de Licânia
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Para mim mesmo
O fim chegou; para mim, para minhas personagens e para os meus parcos leitores. A página espera por um arremate genial, mas, eu, caro leitor, nunca fui gênio, nem na vida fui amigo dos arremates. Ao longo dos meus passos, fui deixando as coisas na tibieza do mais ou menos, e no caminho de quem há ainda muito o que fazer ou dizer. Nesta novela-folhetim, o mote não poderia ser diferente. Eu...
— Não vá desperdiçar seu romance, Clauder Arcanjo?! Estamos a dois passos do final. Não caia na besteira de encerrar com a mácula do “tenho dito”, sem nada ter dito, homem de Deus! – era Paulino Marlley, vermelho de emoção, a pedir-me tento, e invento.
Voltei algumas páginas, relendo-as com o perfume agridoce da nostalgia. Não foram poucas as alegrias neste fabular de Cambono, concluí. Numa mistura de alumbramento, cansaço e ventura.
Ao levantar os olhos, dou com a figura do meu protagonista: Cambono. Sentado na cadeira de balanço, acompanhava as minhas palavras, à espera do desfecho fatal.
— O que esperas de mim, nobre amigo? Dei a esta noveleta o teu nome. A picardia, o humor, o riso, a troça... tudo interpus no teu caminho. Não sei se a ti fui honesto, não sei — a garganta presa como se, na margem da conclusão, me faltasse a bênção da palavra certa, o verbo no tempo correto.
Cambono levantou-se, acariciou o pelo de Banzé, seu fox paulistinha, e confidenciou-me:
— Glória a tudo que vem do verbo. O senhor esteve sempre conosco! Cambono, como o mundo, está repleto de um tudo. Esta novela é como a vida, que não é linear, nem menos ainda um roteiro com início, meio e fim — enquanto falava, iam chegando outras personagens. Com pouco, a minha mesa se viu cercada de uma dezena de tipos. Não me pediram nada, apenas, silenciosamente, colocavam a mão no meu ombro, em sinal de solidariedade e comunhão.
Sim, um romance é obra plural: um caquinho do autor, alguns tijolos dos leitores e o muro de lamentação das personagens. Assuntei a minha memória e dirigi os olhos para o firmamento azul de Licânia.
De repente, o tempo se fechou, nuvens carregadas assomaram no nascente. Seguidas de relâmpagos e trovoadas. Os pássaros e os bichos se agitaram, em polvorosa. Instantes depois, a chuva, torrencial, forte, em dilúvio.
Maria Abógada se aproximou de Cambono e disse que sonhara com algumas passagens de Gênesis. Quando acordara, assustada, viu a Virgem Maria com um pequeno bilhete na mão direita.
Cambono pediu licença e foi rezar. Aos pés da imagem de São Francisco, teve uma visão. Junto a ela, surgia uma voz cavernosa:
— Leia o bilhete que tu recebeste, filho de Deus! Cumpra o que lá se encontra. Caminha sem olhar para trás. Sem olhar para trás.
Adamastor Serbiatus Calvino, o nosso Cambono, retirou o bilhete que havia recebido de Companheiro Acácio, e leu-o seguidas vezes. Com as mãos trêmulas, guardou-o novamente. Em seguida, chamou o Cabo Jacinto Gamão e Maria Abógada, ordenando-os, em voz de comando:
— Temos que subir para o Serrote da Rola. As águas subirão e temos que ter pressa. Vamos, não há tempo a perder.
Lá fora, o açoite dos raios, o rasgar retumbante dos trovões e o castigo impiedoso da chuvarada. O rio subia e transbordava pelas ribanceiras, as carnaubeiras lutavam para se manterem de pé.
Nem todos aceitaram o chamado de Cambono, apesar da força do “argumento” do cacete de juá de Cabo Jacinto e das súplicas milagrosas de Maria Abógada.
Quando estavam reunidos na Praça do Poeta, Cambono dirigiu-lhes a palavra:
— Sigam-me, contudo não olhem para trás. Baixem o rosto e ponham cada um a mão no ombro do irmão que vai à frente. Nós seremos os guias de nós mesmos, com a proteção de Senhora Sant’Anna. Que Deus siga conosco!
Um relâmpago marcou com um rasgo de luz mais forte ainda a cumeeira das casas. Alguns cabras mais frouxos contribuíam com a força das águas, urinando de pavor e de medo no fundo das calças.
— Temos que confiar no Senhor. Vamos, sigam-me! — conclamou Cambono.
Uma fila indiana de licanienses se formou na direção do alto do Serrote da Rola. O caminho era pedregulhoso, sujeitando-os a quedas e deslizes, porém tudo se deu com firmeza e determinação.
Atrás deles, ouviam-se choros e gritos. A potência das águas na enxurrada, a descerem pelos flancos do serrote.
— Não olhem para trás — admoestava-os Cambono, seguindo à frente de todos.
As gotas da chuva eram grossas, batiam no peito dos retirantes, como se quisessem fazê-los retornar. A mão no ombro amigo mantinha-os na direção certeira, e a voz de Cambono injetava-lhes uma energia incomum.
Quando chegaram ao topo do serrote, deram pela presença de um jovem: todo de branco, com os olhos de luz. Para cada um que chegava, ele ofertava a mão amiga.
Quando o último chegou, Cambono dispôs a todos no interior da única caverna que havia naquele lugar.
— O mundo vai se acabar, seu Cambono? — era a voz do pequeno jovem. Seu nome: Antônio.
— Vamos dormir, meu rapazinho. Aqui estamos bem protegidos. Deus nos guiará e a tudo proverá — Cambono acariciou o rosto daquele garoto, vendo nele algo especial.
A noite caiu, escura e pesada, como jamais vista antes. Exaustos, Cambono presenciou que todos caíram em sono profundo.
No outro dia, o sol brilhava e os pássaros anunciavam um novo alvorecer.
— O mundo se acabou, senhor Cambono? — perguntou o pequeno Antônio.
— Não, ainda não. Digamos que Licânia nasceu de novo. Quem sabe um dia você não escreverá esta história.
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