domingo, 19 de fevereiro de 2017

Louvor a Paulo Emílio

por: Juliana Gurgel
Coluna: Enquadros e Letras


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Quando se fala de Paulo Emílio Salles Gomes a primeira referência associada a sua pessoa é a de crítico de cinema. Esse fato não se deve à sua incompetência em outras áreas de atuação, mas por ter representado um fator decisivo para o desenvolvimento da sétima arte no Brasil após ter criado, em 1965, o primeiro curso superior de Cinema do país, na Universidade de Brasília. Suas publicações vão do cinema à crítica literária e à própria literatura, sendo, desta última, o seu trabalho de estreia e de encerramento. O livro Três Mulheres dos Três PPPÊS foi publicado em 1977, ano da morte de Paulo Emílio. Talvez pelo fato de sua publicação ter sido acompanhada pelo falecimento do autor, a obra circulou apenas por um meio de uma minoria intelectual, composto basicamente por profissionais da literatura ou do cinema. 

Publicado primeiramente pela editora Perspectiva em 1977, Três Mulheres dos Três PPPÊS teve sua reedição em 2007 pela editora Cosac Naify. Esta nova edição conta com a organização e posfácio de Carlos Augusto Calil, cineasta, crítico e ensaísta, professor da USP. A publicação é parte de um projeto da editora de publicar a obra completa de Paulo Emílio. Até agora as publicações feitas são as de seus principais trabalhos: Três Mulheres dos Três PPPÊS, Cemitério e Capitu.

Durante a leitura de Três Mulheres dos Três PPPÊS, é possível perceber que o estilo de vida burguês paulista do seu tempo era uma questão inquietante para o autor. Os protagonistas desta história foram construídos de forma a retratar a hipocrisia inerente aos valores componentes do modelo de vida ideal da época. No livro Cemitério, que teve sua produção interrompida pelo falecimento do autor, é notável a mesma crítica. O manuscrito foi encontrado 30 anos após a morte de Paulo Emílio e foi publicado pela editora Cosac Naify em 2007, também sob organização Carlos Augusto Calil. 

Três Mulheres dos Três PPPÊS é dividido em três novelas ambientadas na São Paulo da primeira metade do século XX e retrata, de forma disfórica, os valores culturais e ideológicos prevalecentes na época. As histórias são narradas em primeira pessoa por Polydoro, um “conservador libertário”, como ele mesmo se descreve, que vive uma vida confortável e provida de certas regalias, mas é assombrado pelo horror ao próprio nome devido a um trauma de infância. As novelas contam suas experiências com três mulheres diferentes, em três momentos diferentes de sua vida. Helena, Ermengarda e Ela são mulheres com patologias mentais, que manipulam as fraquezas de Polydoro para satisfazer suas vontades.

Em “Duas vezes com Helena”, a primeira narrativa, Polydoro relata o tórrido romance que viveu com a jovem esposa de seu professor e melhor amigo, às vésperas de completar vinte e cinco anos. 

O personagem introduz o relato contando a natureza de sua amizade com o mentor, a quem tem em alta estima, descrevendo-o como o único gênio que conhecera na vida. Já Helena é descrita por meio de um conjunto de atrativos irresistíveis a Polydoro e, apesar de ter um caráter submisso e tímido, mostra ser dominadora ao subjugar com artifícios sutis o bom senso do protagonista. 

O fato de Polydoro ser um simpatizante do fascismo e o professor um libertário nunca foi um empecilho na relação fraternal que mantinham. O rompimento acontece após a traição do protagonista, fato que o atormenta durante muitos anos, até que um encontro inesperado revela um outro percurso dos acontecimentos.

Em “Ermengarda com H”, o horror de Polydoro ao próprio nome se torna ainda mais presente. Nesta história o protagonista está em idade madura e se envolve com Ermengarda ou Hermengarda, mulher desquitada que é manifestada, respectivamente, de duas formas: ora cruel, manipuladora e egocêntrica, ora traumatizada, transtornada e injustiçada.

A união falida, que nunca teve as devidas formalizações, é o ponto estabelecido no relato de Polydoro, o qual parte dos momentos precoces do envolvimento dos personagens, onde Ermengarda torturava o marido chamando-o por uma espécie de abreviação de seu nome, “Poly”, o que o mantinha em um receio constante da pronúncia completa. Ela o submetia a pequenas humilhações, incluindo ele ter que pronunciar seu nome “Hermengarda” com “H” e implorar pela intimidade de marido e mulher.

A postura de Polydoro muda após a reação negativa da esposa à sua composição “Louvor à dama paulista”. Ao ter sua vaidade intelectual afetada pelo desprezo de Ermengarda, o protagonista muda seu estado de submissão à indiferença, aos poucos privando a esposa dos luxos que lhe proporcionava. 

Por muito tempo a avaliação da personalidade de Ermengarda permanece obscurecida por suas indelicadezas e crueldades, pontuada pela desconfiança de infidelidade, até que um misterioso diário se torna seu companheiro quase inseparável. Dominado pela curiosidade, Polydoro encontra uma forma de ter acesso às confidências da mulher e descobre uma pessoa completamente diferente daquela com que ele acreditava ter convivido por tanto tempo. Conduzido a pensar que construíra em sua mente uma imagem equivocada de Hermengarda, o protagonista procura se redimir com a esposa, mas um fato inesperado seguido de cruas revelações transforma de forma aparentemente definitiva o universo de Polydoro.

O livro encerra com “Duas vezes Ela”, narrativa da derradeira aventura amorosa de Polydoro. Nesta história, o protagonista, já com idade avançada, se envolve com sua jovem secretária que, na sua visão, é uma moça intelectual e virgem. Apesar da desaprovação de seus familiares e íntimos, casa-se com Ela, desta vez usando de todas as burocracias da união conjugal.

Após um longo período de felicidade acomodada, as visões de mundo distintas, refletidas pela diferença de idade, faz com que Ela revele um desenrolar de fatos da sua vida que fora omitido e manipulado durante todo o período de convívio do casal. O objetivo da revelação era o de se afastar definitivamente do marido e aproveitar o que restava de sua juventude. 

No momento em que diz nunca ter amado Ela antes do momento em que toma conhecimento desta outra face da esposa, Polydoro revela as entranhas de sua personalidade. Tentava se afirmar como um “conservador libertário”, que nada esperava de sua existência além de uma “vida conjugal simples, serena e saudável”, “trabalhar o dia inteiro para aumentar o patrimônio”, “uns dois filhos”. Sua expectativa de vida se resumia a “sonhos juvenis de suprema elegância, poder e cultura”, reduzidos “a um nível bem paulista”. Mas o amor que poderia ter nutrido pela Ela adúltera e dissimulada revela o caráter patológico do próprio protagonista, perseguido durante a vida inteira pelas próprias escolhas: subjugado por Helena, “ocupado” por Ermengarda e manipulado por Ela. A diferença entre as duas primeiras e a última é apenas que o comodismo do casamento pacato só poderia ser transformado em amor no momento em que fosse desconstruída a imagem de Ela, encaixando-a no mesmo padrão dos dois amores predecessores. As três mulheres que no formato textual da história se configuram como coadjuvantes, se tornam, em última análise, protagonistas das histórias ao se mostrarem como modalizadores externos e definitivos do percurso do passivo Polydoro.

O horizonte de expectativas é quebrado ao fim de cada uma das três histórias, mas nada se compara à análise do conjunto da obra como um todo. Paulo Emílio conseguiu esculpir os personagens de forma minuciosa, atento a cada detalhe de suas personalidades. Inseriu um coletivo de polêmicas humanas e sociais, dentro de um contexto temporal e espacial, revelando um profundo conhecimento sobre cada um desses elementos, claramente resultado de uma vivência reflexiva e atuante. 

Este livro é recomendado àqueles que apreciam o inesperado, gostam de cruas análises, acreditam que as questões sociais viciadas e falidas são construídas pelo que é inerente ao ser humano ou se sentem atraídos pelo desconforto da verdade. Paulo Emílio construiu uma obra de arte catártica e atemporal, um clássico brasileiro, que deve ser lido e relido pela presente geração e pelas que virão.

“As Três Mulheres dos Três PPPÊS” Paulo Emílio Salles Gomes. Editora Paz e Terra 164 págs.

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