Para
Maria José Alves Arcanjo
A velha Parmênides Wagner
Augusta, avó materna do nosso herói, correu a vista pelo ambiente.
Além das duas redes armadas e das duas velas acesas e da discreta e
bruxuleante lamparina, um urinol cheio de urina fedida e, ao canto,
uma espécie de oratório. No centro deste, as belas imagens de São
Jorge e de Nossa Senhora.
Rubicunda, Dona Parmênides
fez, um pouco a contragosto, o nome da cruz e saiu, pé ante pé. Com
a cabeça revolta, ao descobrir o seu amado neto nas garras do
visitante baiano. Nas suas próprias palavras, julgado e condenado
como um “declarado e perigoso macumbeiro”.
“O meu neto querido, Deus
meu! Tudo o que eu não queria ver com estes meus velhos e cansados
olhos. Sim, sim, eu terei que reconhecer: Adamastorzinho é um
legítimo Cambono!” — dava tristeza ouvir o lamento da velha dama
pelas ruas de Licânia.
Mal entrou na Praça do
Progresso, foi admoestada por Lopau, o manso:
— Não se precipite, Dona
Parmênides. Meu amigo merece, no mínimo, um pouco da sua atenção.
— Minha atenção!?... Mais
atenção do que eu lhe dei ao longo de toda a minha vida?! Apesar de
filho dos maus-bofes daquele seu pai. Seu Lopau, quando ele nasceu,
há cinquenta e dois anos, o velho Sebastião Calvino espalhou, por
todas as ribeiras do Acaraú, que benzera o pequeno com a “água
das suas quimeras”. E eu, que nunca fui com os cornos dos Calvinos,
devolvi, por onde eu andava, que era “uma água turva e
malcheirosa”. Eu, a velha Parmênides Wagner Augusta, avó materna
do desgraçado, não resisti, contudo, aos encantos do pequerrucho.
Era sangue do meu sangue, você bem entende. O “disgramado” do
Sebastião Calvino arrotava, em plena pedra do Mercado Público, que
Adamastorzinho realizaria “tudo aquilo que a Dinastia dos Calvinos,
oriundos da longínqua Transcalvânia, esperara e não obtivera, até
então, de todos os seus varões: graduar-se em Direito, constituir
um império em terras alencarinas, edificar um grandioso monumento na
Praça Central de Licânia, em honra aos ‘valorosos Calvinos’, e
remediar financeiramente todos os descendentes do Visconde de
Quintanilha”.
— Calma, minha senhora. A
emoção, em demasia, pode lhe trazer complicações — Lopau, o
manso, cuidava de serenar os ânimos da ultrajada avó.
— Dinastia dos Calvinos!?
Ora, ora! Na verdade, dizia e, ainda hoje, repito: “uma horda de
mais de mil malandros e desocupados!” Se não erro, para menos, a
minha contabilidade! — gritava, em fumos de ódio, a Senhora
Parmênides.
— O amor pelo seu neto
removerá montanhas — admoestava o manso, e crédulo, Lopau.
— Meu netinho, meu netinho...
— e Dona Parmênides banhou-se em lágrimas.
Não em lágrimas comuns. Não!;
eram lágrimas tão caudalosas, mas tão caudalosas, caro leitor,
que, naquela tarde, em pleno verão, aumentou, sensivelmente, o nível
das águas do rio Acaraú.
Se eu caio nas graças do
exagero?!
E onde já se viu
novela-folhetim sem a bendita pátina das tintas do exagero?
Diga-me?! Onde!?
Ora, você é um leitor de
araque, seu bestão! Deixe-se levar pelas águas caudalosas do
exagero, meu amigo! É no redemoinho delas que a coisa ganha foros de
verdade; pois, no campo da ficção, quanto mais mentira... mais
verdade.
Não está me entendendo!?
É culpa do seu pouco siso para
estas coisas da fabulação. No entanto, não tenho tempo a perder.
Se quiser me seguir, siga-me. Se quiser ficar, fique. Contudo,
advirto-o: grandes aventuras o esperam.
Onde eu me encontrava mesmo?
Ah, já sei.
Pouco depois, atraído pelo
choro da velha senhora, junta-se a eles a “boa” e inconfundível
voz de Zé Funéreo, o agouro em forma de pessoa:
— A morte nunca foi a pior
das coisas nesta nossa lida Severina, Dona Parmênides!
Zé Funéreo recebeu, do manso
Lopau, um chega-pra-lá que ele foi parar no sopé do Serrote da
Rola, mais de meia légua em linha reta.
— Vá com o seu discurso
fúnebre pra lá, seu Chama-cemitério!
Dona Parmênides Wagner Augusta
não arredava pé dos seus lamentos:
— Também, a avó paterna,
aquela maldita Felisberta, nunca lhe teve pulso. A velha Lídia,
cozinheira da casa, lhe punha mais cabresto. O avô paterno, o safado
do Alípio Quinto, deste nem se fala: o velho incitava o meu neto a
cair, fundo, no cacimbão da farra e da esbórnia. Sem limites, deu
no que deu: Cambono. Ô meu Deus!... — e haja choro de Parmênides.
Lopau, o manso, ofereceu-lhe o
peito bom e levou a chorosa avó para a sua casa. Lá chegando,
preparou-lhe um chá de camomila, com folhas de capim-santo. Enquanto
a velha sorvia-o, nos intervalos, entre um gole e outro, a boca não
parava de lamentar. Lopau, astuto e puro, não a interrompia, bem
sabia que, em traumas fortes, o melhor remédio era falar, pôr para
fora tudo, mesmo na base de muito grito e muito pranto.
Lopau ficou sabendo de toda a
criação do seu grande amigo, o atarracado (e serelepe)
Adamastorzinho. De batismo: Adamastor Serbiatus Calvino. Sim, o nosso
herói; filho legítimo do velho Sebastião Calvino e de Dona
Eutrópia Wagner Augusta Dã (a estimada e zelada filha única da
velha Parmênides Wagner Augusta), cria dessas tradicionais
dinastias. Sangue que era a mistura (para alguns, toldada) dos
Calvinos com os D’Alembert Linhares Gomes da Silva Gonzaga. E
“coado, por destilação de honradez, pelo sangue dos Wagner
Augusta” — asseverava, pelos quatro cantos de Licânia, a
rubicunda Senhora Parmênides, sua avó materna.
Sete horas depois, com o Acaraú
já nas ribanceiras, numa cheia como nunca mais se viu, deu-se
meia-noite. No horizonte, uma lua mansa e chorosa. No céu, algumas
estrelas e, no ar, um cheiro de noite dadivosa.
De repente, um som estranho.
Lopau, o manso, cuidou de abrir
a janela que dava para a rua. Neste exato momento, recebeu uma chuva
de confetes, maisena, mijo e serpentina.
— Hoje eu não quero sofrer,/
Eu não quero sofrer, / Hoje eu não quero chorar,/ Deixei a tristeza
lá fora,/ Mandei a saudade esperar, lá, rá, rá, rá,/ Hoje eu não
quero sofrer,/ Quem quiser que sofra em meu lugar.
Era sábado de Carnaval, e a
bandinha de Hermano César, o Imperador das Brotas do Salvador, já
estava na avenida, declarando aberto o período de momo em Licânia.
Atrás da bandinha, bêbados,
gregos, persas, lusos, baitolas e troianos. Sem falar na mundiça do
Bloco dos Quebrados.
Mas, caro leitor, isso já é
assunto para outra história.
Bom domingo, e até o nosso
próximo capítulo.
Clauder Arcanjo
clauderarcanjo@gmail.com
5 comentários:
Um mago-pai-de-santo do conto!
Muito bom!! O entrelaçamento entre os personagens e entre os personagens e os lugares ficou muito bom Sem falar no tom prosaico da narração.
Realmente, um banho de conto! Sente-se, de forma muito longe da ideia de seguir uma cartilha de como fazer conto, todos os temperos na obra. Tudo na medida certa!
A senhora Parmênides me ganhou, rs!
Muito bom!!!!
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