sábado, 21 de fevereiro de 2015

Cambono: Ecce homo!



Para Maria José Alves Arcanjo

A velha Parmênides Wagner Augusta, avó materna do nosso herói, correu a vista pelo ambiente. Além das duas redes armadas e das duas velas acesas e da discreta e bruxuleante lamparina, um urinol cheio de urina fedida e, ao canto, uma espécie de oratório. No centro deste, as belas imagens de São Jorge e de Nossa Senhora.
Rubicunda, Dona Parmênides fez, um pouco a contragosto, o nome da cruz e saiu, pé ante pé. Com a cabeça revolta, ao descobrir o seu amado neto nas garras do visitante baiano. Nas suas próprias palavras, julgado e condenado como um “declarado e perigoso macumbeiro”.
“O meu neto querido, Deus meu! Tudo o que eu não queria ver com estes meus velhos e cansados olhos. Sim, sim, eu terei que reconhecer: Adamastorzinho é um legítimo Cambono!” — dava tristeza ouvir o lamento da velha dama pelas ruas de Licânia.
Mal entrou na Praça do Progresso, foi admoestada por Lopau, o manso:
— Não se precipite, Dona Parmênides. Meu amigo merece, no mínimo, um pouco da sua atenção.
— Minha atenção!?... Mais atenção do que eu lhe dei ao longo de toda a minha vida?! Apesar de filho dos maus-bofes daquele seu pai. Seu Lopau, quando ele nasceu, há cinquenta e dois anos, o velho Sebastião Calvino espalhou, por todas as ribeiras do Acaraú, que benzera o pequeno com a “água das suas quimeras”. E eu, que nunca fui com os cornos dos Calvinos, devolvi, por onde eu andava, que era “uma água turva e malcheirosa”. Eu, a velha Parmênides Wagner Augusta, avó materna do desgraçado, não resisti, contudo, aos encantos do pequerrucho. Era sangue do meu sangue, você bem entende. O “disgramado” do Sebastião Calvino arrotava, em plena pedra do Mercado Público, que Adamastorzinho realizaria “tudo aquilo que a Dinastia dos Calvinos, oriundos da longínqua Transcalvânia, esperara e não obtivera, até então, de todos os seus varões: graduar-se em Direito, constituir um império em terras alencarinas, edificar um grandioso monumento na Praça Central de Licânia, em honra aos ‘valorosos Calvinos’, e remediar financeiramente todos os descendentes do Visconde de Quintanilha”.
— Calma, minha senhora. A emoção, em demasia, pode lhe trazer complicações — Lopau, o manso, cuidava de serenar os ânimos da ultrajada avó.
— Dinastia dos Calvinos!? Ora, ora! Na verdade, dizia e, ainda hoje, repito: “uma horda de mais de mil malandros e desocupados!” Se não erro, para menos, a minha contabilidade! — gritava, em fumos de ódio, a Senhora Parmênides.
— O amor pelo seu neto removerá montanhas — admoestava o manso, e crédulo, Lopau.
— Meu netinho, meu netinho... — e Dona Parmênides banhou-se em lágrimas.
Não em lágrimas comuns. Não!; eram lágrimas tão caudalosas, mas tão caudalosas, caro leitor, que, naquela tarde, em pleno verão, aumentou, sensivelmente, o nível das águas do rio Acaraú.
Se eu caio nas graças do exagero?!
E onde já se viu novela-folhetim sem a bendita pátina das tintas do exagero? Diga-me?! Onde!?
Ora, você é um leitor de araque, seu bestão! Deixe-se levar pelas águas caudalosas do exagero, meu amigo! É no redemoinho delas que a coisa ganha foros de verdade; pois, no campo da ficção, quanto mais mentira... mais verdade.
Não está me entendendo!?
É culpa do seu pouco siso para estas coisas da fabulação. No entanto, não tenho tempo a perder. Se quiser me seguir, siga-me. Se quiser ficar, fique. Contudo, advirto-o: grandes aventuras o esperam.
Onde eu me encontrava mesmo? Ah, já sei.
Pouco depois, atraído pelo choro da velha senhora, junta-se a eles a “boa” e inconfundível voz de Zé Funéreo, o agouro em forma de pessoa:
— A morte nunca foi a pior das coisas nesta nossa lida Severina, Dona Parmênides!
Zé Funéreo recebeu, do manso Lopau, um chega-pra-lá que ele foi parar no sopé do Serrote da Rola, mais de meia légua em linha reta.
— Vá com o seu discurso fúnebre pra lá, seu Chama-cemitério!
Dona Parmênides Wagner Augusta não arredava pé dos seus lamentos:
— Também, a avó paterna, aquela maldita Felisberta, nunca lhe teve pulso. A velha Lídia, cozinheira da casa, lhe punha mais cabresto. O avô paterno, o safado do Alípio Quinto, deste nem se fala: o velho incitava o meu neto a cair, fundo, no cacimbão da farra e da esbórnia. Sem limites, deu no que deu: Cambono. Ô meu Deus!... — e haja choro de Parmênides.
Lopau, o manso, ofereceu-lhe o peito bom e levou a chorosa avó para a sua casa. Lá chegando, preparou-lhe um chá de camomila, com folhas de capim-santo. Enquanto a velha sorvia-o, nos intervalos, entre um gole e outro, a boca não parava de lamentar. Lopau, astuto e puro, não a interrompia, bem sabia que, em traumas fortes, o melhor remédio era falar, pôr para fora tudo, mesmo na base de muito grito e muito pranto.
Lopau ficou sabendo de toda a criação do seu grande amigo, o atarracado (e serelepe) Adamastorzinho. De batismo: Adamastor Serbiatus Calvino. Sim, o nosso herói; filho legítimo do velho Sebastião Calvino e de Dona Eutrópia Wagner Augusta Dã (a estimada e zelada filha única da velha Parmênides Wagner Augusta), cria dessas tradicionais dinastias. Sangue que era a mistura (para alguns, toldada) dos Calvinos com os D’Alembert Linhares Gomes da Silva Gonzaga. E “coado, por destilação de honradez, pelo sangue dos Wagner Augusta” — asseverava, pelos quatro cantos de Licânia, a rubicunda Senhora Parmênides, sua avó materna.
Sete horas depois, com o Acaraú já nas ribanceiras, numa cheia como nunca mais se viu, deu-se meia-noite. No horizonte, uma lua mansa e chorosa. No céu, algumas estrelas e, no ar, um cheiro de noite dadivosa.
De repente, um som estranho.
Lopau, o manso, cuidou de abrir a janela que dava para a rua. Neste exato momento, recebeu uma chuva de confetes, maisena, mijo e serpentina.
— Hoje eu não quero sofrer,/ Eu não quero sofrer, / Hoje eu não quero chorar,/ Deixei a tristeza lá fora,/ Mandei a saudade esperar, lá, rá, rá, rá,/ Hoje eu não quero sofrer,/ Quem quiser que sofra em meu lugar.
Era sábado de Carnaval, e a bandinha de Hermano César, o Imperador das Brotas do Salvador, já estava na avenida, declarando aberto o período de momo em Licânia.
Atrás da bandinha, bêbados, gregos, persas, lusos, baitolas e troianos. Sem falar na mundiça do Bloco dos Quebrados.
Mas, caro leitor, isso já é assunto para outra história.
Bom domingo, e até o nosso próximo capítulo.

Clauder Arcanjo

clauderarcanjo@gmail.com

5 comentários:

Hermes de Sousa Veras disse...

Um mago-pai-de-santo do conto!

Paulo Henrique Passos disse...

Muito bom!! O entrelaçamento entre os personagens e entre os personagens e os lugares ficou muito bom Sem falar no tom prosaico da narração.

CA Ribeiro Neto disse...

Realmente, um banho de conto! Sente-se, de forma muito longe da ideia de seguir uma cartilha de como fazer conto, todos os temperos na obra. Tudo na medida certa!

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

A senhora Parmênides me ganhou, rs!

Pedro Gurgel disse...

Muito bom!!!!