terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

PM – palavra mariscada

para Thay Freitas



Lia David M. Schneider enquanto cagava. Uma das melhores experiências que um ser humano poderia viver.

Somente matéria substitui matéria. Meu companheiro logo passou e ofereceu pó. Sem aceitar, perguntei a mim mesmo se era necessário ler um americano. Eu não sou inglês e nem sei inglês.

Ali mesmo, no banheiro, no livro lido, escrevia em português “brasileiro” um poema por cima das páginas do Tio Sam. Campo vasto, não vasto campo.

– Que é isso Fabinho? – Meu companheiro era um assíduo intransigente. É insuportável a aceitação total pelo outro, por isso estou com ele, preciso de alguém que me morda e transforme minhas atitudes em desnecessidades.

– Tu só faz porcaria! – Ele dizia. Odiava meus poemas e brigava comigo, dizendo não adiantar escrever essas linhas pois os psicanalistas e biógrafos iriam liquidificar minha vasta obra em auto-justificativa: ele fazia isso por ser veado e porque apanhava da mãe.

Depois do banho fomos pra rua porque é nela que se pode ser livre, contestar as paredes imundas de um quartinho vagabundo, infiltrado e nojento, como não bastasse nos tomavam quinhentos reais por mês. A segunda experiência mais rica é mijar na rua.

Ofereci ração em pequenas sacolinhas para os cachorros que dormiam com seus respectivos mendigos e quando já era o início da manhã ele terminava a sua última intervenção nos muros. Minha mania era essa e acabei riscando alguns papéis de outro livro que carregava comigo. Pouco fiz ao ar livre a não ser acompanhá-lo.

Obviamente que recebi umas porradas por isso.

- Você não vai fazer nada hoje?

- Deixe eu com a minha arte.

Pichação não é arte, Fabinho!

O pichador na história era ele, mas me chamava assim por causa da minha letra, uns garranchos. O artista era ele, afinal, quem incomoda mais? O poeta que não publica ou aquele que risca em todos os lugares sem se preocupar com nenhum editor-patrão?

Nosso dia acabou-começou tomando açaí com banana e granola para os psicanalistas e biógrafos não descobrirem se estamos em Belém do Pará ou São Paulo.



Hermes de Sousa Veras
Cearense em devir-amazônia.
Dizem que ficou sombreado na mata
e voltou falando sobre profecias de fim de mundo.

9 comentários:

Paulo Henrique Passos disse...

"Artista é um inútil fundamental" Carlos Castelo

CA Ribeiro Neto disse...

Publicar não faz do ser social um poeta. Publicar nada mais é que divulgar, comercialmente ou não, uma obra de determinado poeta. Os dois são artistas igualmente.

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

Quando li a segunda frase eu ri. Muito bom, porque fiquei na dúvida se a melhor coisa da vida era a primeira frase completa, apenas a primeira ação simultânea, ou a segunda ação simultânea. Óbvio que ri achando a segunda. E isso me tornou o texto um pouco mais genial quando uni ao restante numa pseudo-análise-social de minha parte.

Agora sobre a questão que nossos dois colegas colocaram e que é suscitada pelo texto. Pelo que entendi, o critério de artista da personagem é o critério de incomodar. Causar mais em sociedade. Nesse caso, a pichação seria mais artística.

Sobra-me uma questão: na arte (obra/produtor) há alguma necessidade de expressão social para ser compreendida enquanto arte?
Se tivermos um "Pensador" de Rodin, tal escultura, depois de toda a humanidade ter sido extinta e não existir mais nenhuma entidade inteligente no universo que possa apreciar essa obra, ela continua sendo uma obra de arte? Ou passa a ser um pedaço de matéria comum na existência feito aquela pedra que chutamos sem perceber quando vamos ao Shopping? (Sem o status de arte) Se continuar sendo uma obra de arte, talvez haja algo de artístico intrínseco na obra, mesmo que derivado do artesão - como se a produção fosse um gatilho apenas. Se não continuar sendo uma obra de arte, parece que a arte necessita do social para se constituir como arte. No primeiro caso é bem fácil utilizar essa argumentação para mostrar quão artísticos são os dois. No segundo caso, talvez a ênfase do social, do causar, possa ser um critério de distinção para o produtor da obra, se artista ou não. O que acham?

Bom, socialmente, se alguém não publica e sua obra se perde no tempo sem que nenhum outro possa ver, certamente este indivíduo nunca se imortalizará na história como um artista.

Muito bom, Hermes, pelas suscitações. Abraço!

CA Ribeiro Neto disse...

Acredito que a arte precisa provocar, mas ela não precisa ser publica. Defendo que se o "produto arte" provocar seu idealizador, já a caracteriza como arte. Se não provocar quem o produziu, qual sua razão de existir? Imaginem: se hoje encontram uma obra escondida da Rachel de Queiroz, que ela nunca mostrou para ninguém, só ela leu, e acabam publicando em pós-morte, a obra não seria arte antes, quando estava na mão da autora, mas se torna arte nas mãos de um editor. Não me parece justo.

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

Provocar no idealizador é um bom argumento, ao menos ao meu ver, Carlim.
Mas, fiquei pensando na questão que você colocou sobre a possibilidade de não provocar nada em quem o produziu.
Nesse sentido, se um autor produziu uma obra e não mostrou para mais ninguém, apenas ele soube da obra, e mesmo assim essa obra não provocou nada nele, então a obra não se caracteriza como arte, consequentemente, nem o autor como artista. Não é isso? Pelo que entendi do pensamento.

Poderíamos aplicar o mesmo para a Rachel de Queiroz. Se a obra que ela manteve escondida antes e não mostrou para mais ninguém, se esta obra não provocou nada nela, então não era arte antes. Contudo, se quando publicada provocou algo no editor e nos leitores, então se tornou arte.

Pensei isso de acordo com sua defesa, Carlim, a saber: "(...) que se o "produto arte" provocar seu idealizador, já a caracteriza como arte (...)".

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

Mas isso é porque estamos pensando na arte como algo com um fim. Ou seja, com uma finalidade, a saber, a de provocar algo socialmente. Como uma função social.
Entretanto, a arte tem algum fim? Certamente, a arte interessada tem algum fim. A arte que tenha algum interesse social subjacente. Mas isso se aplica a arte em geral como algo essencial ao conceito de arte?

Talvez, Carlim, você conseguisse seu intento (de fazer do produtor solitário ainda um artista), se desse ênfase na produção em si mesma. Foi essa a sua intenção ao falar de provocar o próprio autor?

Mas se fizermos isso, dar ênfase a produção, pareceria difícil diferenciar a produção de um pneu de carro da produção de um quadro do Picasso como arte, por exemplo. (Etimologicamente seriam duas artes mesmo). Mas acho que nós estamos tratando do belo. (Aí também entra a questão do feio como arte).
Não sei bem. O que acham?

CA Ribeiro Neto disse...

Sim, a minha teoria, inclusive a ideia-motor para este blog, é a democratização da produção de arte. Que o foco seja no produto e não na provocação que a obra possa gerar. E, sim, na arte, um pneu e um Picasso podem ser artes, se algo vai ser belo e expor museus aí depende de como ela atinja cada um.

A provocação na arte é preciso ser fator social, porque é ponto de aceleração. Até o potencial pintor começar pintando um conjunto de frutas tem provocação - que é saber-se pintor.

Quanto ao exemplo da Rachel, a sua derivação é possível de existir e creio que já pode ter acontecido. Cabe considerar como exceção?

Marcos Paulo Souza Caetano disse...

"(...) E, sim, na arte, um pneu e um Picasso podem ser artes (...)"
Não entendi. Podem ser ou são artes? Se a resposta é mesmo "podem ser artes", o que tira a construção de um pneu da possibilidade de ser arte para a factualidade de "isto é arte"? Se a resposta é "são artes", OK, já é arte.
Porque a ideia é conseguir diferenciar. Se não conseguimos diferenciar, tudo seria arte. No caso de tudo ser arte, a situação da Rachel não deveria ser exceção, uma vez que também seria arte (igual o pneu).
Em segundo, caso consigamos um critério de demarcação, distinção do que saibamos dizer que algo é arte ou que algo não é arte, faz sentido dizer que o exemplo X é exceção? Isso fala mais sobre a exceção ou sobre o critério de demarcação? Parece que mostra que nosso critério não nos disse mesmo o que era arte, afinal, existem exemplos que estão fora dele e que nós consideramos arte (ou então desejamos considerar).

Como estamos usando o termo "arte"? Técnica? Como produção de qualquer coisa? (Num sentido etimológico). Ou estamos usando o termo "arte" para se tratar do belo, do sublime, ou de outros efeitos subjetivos de apreciação e contemplação?

Hermes de Sousa Veras disse...

Eu fiz um comentário relativamente grande mas o perdi. Ok. Que bom que estão discutindo, e se o texto foi uma espécie de gatilho para isso, melhor ainda, certamente nesse momento ele foi arte. A arte, ao meu ver, não é uma questão de essência, e sim de relação. Não está dentro de A nem de B, mas no que liga A a B e produz efeitos esperados: estéticas, potencialização de forças da vida...enfim, é discussão pra mais de metro.