por:
Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Para Dulce
Cavalcante
Aqui
estou, caro leitor, de volta. Novo, de novo. Enfim, graças ao bom Deus, eu
consegui resistir ao ataque da muriçoca do capítulo anterior.
É
mais do que chegada a hora de retornarmos ao núcleo da minha novela-folhetim: a
saga do herói Adamastor Serbiatus Calvino, o nosso valoroso Cambono.
Como
vocês ficaram sabendo, estavam, mais de trezentos licanienses, à porta da
Farmácia do Galvino, em busca de conhecimento acerca dos boatos que cercavam o
nosso protagonista.
—
Por onde anda o nosso prefeito, minha gente?! A coisa já virou caso de
segurança nacional! — disparava, entredentes, o líder da oposição; sempre a
pedir o impeachment do alcaide, por qualquer risco de fósforo.
—
Isto vai acabar atraindo a fúria santa dos céus sobre o nosso sagrado chão.
Valha-nos, Nosso Senhor Jesus Cristo! — temia o beato Salustiano Celestial,
sempre a anunciar o fim do mundo, a torto e a direito.
—
Desgraça maior é a mancebia da tua única filha, beato “disgramado”. Seu carola
de uma figa! — vazou, anonimamente, do meio da multidão.
—
Quem foi o filho de uma mãe que falou isto? Apareça, se for homem, seu bosta! —
irado, o beato Salustiano corria os olhos injetados à cata do agressor. Na mão
direita, a palavra santa de Deus; na esquerda, o punhal afiado: a “palavra”
profana do homem.
—
Vamos manter a ordem e o silêncio, meu povo! Se não, acreditem, o professor
Galvino, amigo dos bons modos e da paz, não vai esclarecer as questões que nos
afligem — as palavras do Seu Zequinha Coletor obraram o milagre da conciliação
e da concórdia, pelo menos nos próximos cinco minutos.
Sete
horas da manhã, em ponto, parecia um comício, tanta era a quantidade de pessoas
reunidas frente à farmácia.
Meia
hora depois, os portões principais se abriram. Opa!... Desculpe-me,
empolguei-me com a história e falei como se estivesse narrando a abertura do
estádio para um jogo de futebol. Também, leitor, o escritor se empolga, e,
algumas vezes, a sua pena toma rumos desconhecidos. Para isto é que existem os
revisores e que se necessita do tal do copidesque.
Continuemos.
Hoje, não estou para divagâncias, nem muito menos para elucubrações. A prosa
enxuta, concisa e exata é o mote que me inspira, me ilumina e me guia. Não me
deixarei navegar nos oceanos das digressões descabidas, nas poetiquices da
forma, no flanar a esmo pelas ondas revoltas do acaso e pelas procelas do
imprevisto. Serei claro e sem adjetivações. Um Graciliano Ramos redivivo.
Apesar de cearense, dei férias à minha porção José de Alencar.
O
quê?!... Eu já me entreguei à esbórnia do verbo!?...
Você,
rabugento leitor, é mais chato de que os meus críticos. Mais desleal do que a
mais renitente das tosses brabas, mais espezinhador do que o espinho mais
afiado. Seu cretino!...
Tudo
bem, tudo bem. Já estou de volta, seu filho de um verbo descarnado!
Ao
abrir a porta da farmácia, o Antônio do Eurico, assistente de vendas, teve um
susto daqueles.
—
Se for para comprar Viagra, vou logo avisando: só temos duas caixas de resto —
anunciou com sua voz enfermiça.
A
multidão, que guardava uma paz armada, quase que invadiu o recinto.
Mais
uma vez, Zequinha Coletor abrandou os ânimos com sua serena admoestação:
—
Sentem-se todos. O Professor Galvino Arcanjo irá proferir uma aula, respondendo
a todas as nossas dúvidas. Por favor, sentem-se.
A
legião de exaltados cuidou de sentar-se à frente da farmácia.
Aproveitando
o movimento, uma pessoa passou por trás de todos e, de forma imperceptível,
entrou no estabelecimento, dirigindo-se ao balcão. Falou baixinho ao
balconista, pedindo-lhe uma medicação.
Na
saída, também tentando o anonimato, quis sair pelos fundos. No entanto, sua
presença foi notada.
—
Alguém furou o bloqueio. Vejam, ele está tentando escafeder-se pela porta que
dá para o Mercado Público.
Quando
três dos presentes tentaram correr para pegar o fugitivo, eis que surge o cabo
Jacinto Gamão. Com a sua conhecida fúria de pau-mandado, ele correu os olhos
pela multidão, como se os ameaçasse com o seu conhecido, e fornido, cacete de
juá. Pegou o fujão pela gola da camisa, tirando o cabra do chão, soprando-lhe
nas fuças:
—
Para onde você pensa que vai, meu filho?!
Mais
do que ligeiro, cabo Jacinto meteu a mão no bolso do sujeito e sacou o fármaco.
Na sua visão, o objeto da questão.
—
Isto é para o meu futuro sogro, amigo! Ele casará amanhã e anda, por demais,
fraco das forças. Como a minha sogra, viúva e um pouco gasta pelos anos, já não
é um pixotinha, estou levando o azulzinho para injetar ânimo nas carnes daquele
cabra frouxo.
—
Nome e endereço do nominado? — inquiriu Jacinto. Como se estivesse num
inquérito na delegacia.
—
O nome do noivo é Ivan Perobino Abuelo. Quanto à minha sogra, a viúva, seu nome
é Senhora Therezinha Ferreira Valladares de Jesus; com dois “h” e com dois “l”.
—
Com dois “h” e com dois “l”? Que frescura mais besta é esta, seu cabra? Esta
mulher é das estranjas? — o cabo Jacinto Gamão assuntou, já com os miolos
fervendo, e com a mão no companheiro cacete de juá.
Do
meio da multidão, alguém gritou:
—
Este sujeitinho que está falando com o cabo Jacinto é o baiano, minha gente! O
tal do macumbeiro que está botando a perder o coitado do Adamastor Serbiatus
Calvino, o neto de Dona Parmênides Augusta!
Menino,
correu um vento de alvoroço no meio da turba ignara, que a coisa ia descambar
para uma revolução popular. Os homens foram se abaixando, cada um arrancando
uma pedra de paralelepípedo da rua; as mulheres, subindo as saias, foram
limpando as unhas afiadas: armas preferidas das damas de Licânia, em especial
quando combinadas com a língua carregada de fuxicos, palavrões e urros.
Percebendo
o risco do motim, o cabo Jacinto Gamão passou a gritar:
—
O Coronel mandou dispersar. Deixem tudo com a Lei. Vão pra casa! Xô, xô, xô!...
Se não o pau vai cantar, ouviram? E vocês sabem como o meu cacete de juá
a-do-ra amaciar lombo de gente.
Nada
de surtir efeito. De olhos injetados, a multidão caminhava, armada e em
volúpias de ódio, em direção ao indigitado.
Quando
a cena descambava para o exercício da (in)justiça popular, o conhecido
linchamento, Seu Zequinha Coletor anunciou:
—
Vejam como o nascente está bonito! Vem chuva grossa, meu povo!...
Nas
ribeiras de Licânia, chuva é coisa mais valiosa do que milagre. Todos deram as
costas para a cena da prisão do baiano macumbeiro, o Senhor Formigão Gallo dos
Anjos, mulato alto, filho de São Salvador da Bahia.
—
Estas torres anunciam chuvarada para o final da tarde! — foram as palavras do
Manuel Alves, metido a meteorologista das bandas de Licânia.
—
Tire os seus olhos do nascente, Manuel! Se não, você vai secar as nuvens! —
achincalhou, algum (des)conhecido, da calçada da bodega do Edir, a confraria
dos pimbas-brancas.
Nisto,
alguém gritou:
—
O macumbeiro fugiu!
Cabo
Jacinto havia sido atingido por uma notória cacetada na cabeça e se encontrava
quedo; ressonando, placidamente, como um inofensivo menino.
Fiquemos
por aqui. Próxima semana, continuarei com tal mistério; porém, prometo, eu
casarei o Ivan Perolino Abuelo. Que Deus permita!
Bom
domingo.
Um comentário:
A escrita do Clauder tem essa conversa com o leitor, que já vi algumas vezes e geralmente não bem feito.
O dele é muito bem feito!
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