sábado, 21 de março de 2015

Cambono - Pausa para as bodas de Ivan



por: Clauder Arcanjo
Coluna: Portão de Licânia
Para Dulce Cavalcante

Aqui estou, caro leitor, de volta. Novo, de novo. Enfim, graças ao bom Deus, eu consegui resistir ao ataque da muriçoca do capítulo anterior.
É mais do que chegada a hora de retornarmos ao núcleo da minha novela-folhetim: a saga do herói Adamastor Serbiatus Calvino, o nosso valoroso Cambono.
Como vocês ficaram sabendo, estavam, mais de trezentos licanienses, à porta da Farmácia do Galvino, em busca de conhecimento acerca dos boatos que cercavam o nosso protagonista.
— Por onde anda o nosso prefeito, minha gente?! A coisa já virou caso de segurança nacional! — disparava, entredentes, o líder da oposição; sempre a pedir o impeachment do alcaide, por qualquer risco de fósforo.
— Isto vai acabar atraindo a fúria santa dos céus sobre o nosso sagrado chão. Valha-nos, Nosso Senhor Jesus Cristo! — temia o beato Salustiano Celestial, sempre a anunciar o fim do mundo, a torto e a direito.
— Desgraça maior é a mancebia da tua única filha, beato “disgramado”. Seu carola de uma figa! — vazou, anonimamente, do meio da multidão.
— Quem foi o filho de uma mãe que falou isto? Apareça, se for homem, seu bosta! — irado, o beato Salustiano corria os olhos injetados à cata do agressor. Na mão direita, a palavra santa de Deus; na esquerda, o punhal afiado: a “palavra” profana do homem.
— Vamos manter a ordem e o silêncio, meu povo! Se não, acreditem, o professor Galvino, amigo dos bons modos e da paz, não vai esclarecer as questões que nos afligem — as palavras do Seu Zequinha Coletor obraram o milagre da conciliação e da concórdia, pelo menos nos próximos cinco minutos.
Sete horas da manhã, em ponto, parecia um comício, tanta era a quantidade de pessoas reunidas frente à farmácia.
Meia hora depois, os portões principais se abriram. Opa!... Desculpe-me, empolguei-me com a história e falei como se estivesse narrando a abertura do estádio para um jogo de futebol. Também, leitor, o escritor se empolga, e, algumas vezes, a sua pena toma rumos desconhecidos. Para isto é que existem os revisores e que se necessita do tal do copidesque.
Continuemos. Hoje, não estou para divagâncias, nem muito menos para elucubrações. A prosa enxuta, concisa e exata é o mote que me inspira, me ilumina e me guia. Não me deixarei navegar nos oceanos das digressões descabidas, nas poetiquices da forma, no flanar a esmo pelas ondas revoltas do acaso e pelas procelas do imprevisto. Serei claro e sem adjetivações. Um Graciliano Ramos redivivo. Apesar de cearense, dei férias à minha porção José de Alencar.
O quê?!... Eu já me entreguei à esbórnia do verbo!?...
Você, rabugento leitor, é mais chato de que os meus críticos. Mais desleal do que a mais renitente das tosses brabas, mais espezinhador do que o espinho mais afiado. Seu cretino!...
Tudo bem, tudo bem. Já estou de volta, seu filho de um verbo descarnado!
Ao abrir a porta da farmácia, o Antônio do Eurico, assistente de vendas, teve um susto daqueles.
— Se for para comprar Viagra, vou logo avisando: só temos duas caixas de resto — anunciou com sua voz enfermiça.
A multidão, que guardava uma paz armada, quase que invadiu o recinto.
Mais uma vez, Zequinha Coletor abrandou os ânimos com sua serena admoestação:
— Sentem-se todos. O Professor Galvino Arcanjo irá proferir uma aula, respondendo a todas as nossas dúvidas. Por favor, sentem-se.
A legião de exaltados cuidou de sentar-se à frente da farmácia.
Aproveitando o movimento, uma pessoa passou por trás de todos e, de forma imperceptível, entrou no estabelecimento, dirigindo-se ao balcão. Falou baixinho ao balconista, pedindo-lhe uma medicação.
Na saída, também tentando o anonimato, quis sair pelos fundos. No entanto, sua presença foi notada.
— Alguém furou o bloqueio. Vejam, ele está tentando escafeder-se pela porta que dá para o Mercado Público.
Quando três dos presentes tentaram correr para pegar o fugitivo, eis que surge o cabo Jacinto Gamão. Com a sua conhecida fúria de pau-mandado, ele correu os olhos pela multidão, como se os ameaçasse com o seu conhecido, e fornido, cacete de juá. Pegou o fujão pela gola da camisa, tirando o cabra do chão, soprando-lhe nas fuças:
— Para onde você pensa que vai, meu filho?!
Mais do que ligeiro, cabo Jacinto meteu a mão no bolso do sujeito e sacou o fármaco. Na sua visão, o objeto da questão.
— Isto é para o meu futuro sogro, amigo! Ele casará amanhã e anda, por demais, fraco das forças. Como a minha sogra, viúva e um pouco gasta pelos anos, já não é um pixotinha, estou levando o azulzinho para injetar ânimo nas carnes daquele cabra frouxo.
— Nome e endereço do nominado? — inquiriu Jacinto. Como se estivesse num inquérito na delegacia.
— O nome do noivo é Ivan Perobino Abuelo. Quanto à minha sogra, a viúva, seu nome é Senhora Therezinha Ferreira Valladares de Jesus; com dois “h” e com dois “l”.
— Com dois “h” e com dois “l”? Que frescura mais besta é esta, seu cabra? Esta mulher é das estranjas? — o cabo Jacinto Gamão assuntou, já com os miolos fervendo, e com a mão no companheiro cacete de juá.
Do meio da multidão, alguém gritou:
— Este sujeitinho que está falando com o cabo Jacinto é o baiano, minha gente! O tal do macumbeiro que está botando a perder o coitado do Adamastor Serbiatus Calvino, o neto de Dona Parmênides Augusta!
Menino, correu um vento de alvoroço no meio da turba ignara, que a coisa ia descambar para uma revolução popular. Os homens foram se abaixando, cada um arrancando uma pedra de paralelepípedo da rua; as mulheres, subindo as saias, foram limpando as unhas afiadas: armas preferidas das damas de Licânia, em especial quando combinadas com a língua carregada de fuxicos, palavrões e urros.
Percebendo o risco do motim, o cabo Jacinto Gamão passou a gritar:
— O Coronel mandou dispersar. Deixem tudo com a Lei. Vão pra casa! Xô, xô, xô!... Se não o pau vai cantar, ouviram? E vocês sabem como o meu cacete de juá a-do-ra amaciar lombo de gente.
Nada de surtir efeito. De olhos injetados, a multidão caminhava, armada e em volúpias de ódio, em direção ao indigitado.
Quando a cena descambava para o exercício da (in)justiça popular, o conhecido linchamento, Seu Zequinha Coletor anunciou:
— Vejam como o nascente está bonito! Vem chuva grossa, meu povo!...
Nas ribeiras de Licânia, chuva é coisa mais valiosa do que milagre. Todos deram as costas para a cena da prisão do baiano macumbeiro, o Senhor Formigão Gallo dos Anjos, mulato alto, filho de São Salvador da Bahia.
— Estas torres anunciam chuvarada para o final da tarde! — foram as palavras do Manuel Alves, metido a meteorologista das bandas de Licânia.
— Tire os seus olhos do nascente, Manuel! Se não, você vai secar as nuvens! — achincalhou, algum (des)conhecido, da calçada da bodega do Edir, a confraria dos pimbas-brancas.
Nisto, alguém gritou:
— O macumbeiro fugiu!
Cabo Jacinto havia sido atingido por uma notória cacetada na cabeça e se encontrava quedo; ressonando, placidamente, como um inofensivo menino.
Fiquemos por aqui. Próxima semana, continuarei com tal mistério; porém, prometo, eu casarei o Ivan Perolino Abuelo. Que Deus permita!
Bom domingo.

Um comentário:

CA Ribeiro Neto disse...

A escrita do Clauder tem essa conversa com o leitor, que já vi algumas vezes e geralmente não bem feito.

O dele é muito bem feito!